domingo, novembro 21

Da casa

O frio sente-se bem por aqui. Ninguém o convidou, mas instala-se. Começa no ar, contamina as coisas e depois os corpos. Parece uma opinião, silenciosa, mas insistente. Há coisas que se queixam, o ar não. Os corpos acabam por aceitar.

quarta-feira, novembro 10

A minha gata...

...cheirou com afinco The New Yorker Book of Cat Cartoons. Também eu. Ela não pestanejou perante as subtilezas de Steinberg. Eu perdi a vontade de trabalhar. Vou acompanhá-la ao sofá. O resto da tarde.

terça-feira, novembro 9

A minha gata...

...não arranha árvores. Dedicou-se a um tapete com unhas e olhares de desafio. O tapete resiste, o gozo dela também. Para meu gozo, gostava de ter uma árvore em casa, ainda que não me desafie com olhares.

domingo, outubro 24

Da casa

Há dias assim, em que o recolhimento escapa pelas frinchas e, de súbito, o vento faz-se convidado e instala-se. Traz com ele o ruído, a agitação, os destemperos, o desarrumo, cheiros e frescura. Parece insistir na ideia de posto de observação contaminado pelo mundo. Acolhedor, portanto.

A minha gata...

...consegue fazer da casa um enorme palacete. Há poisos de soneca diferentes por época. Agora ocupou o sofá, o lugar mais exposto até hoje. Há detalhes que nunca veria se ela os não mostrasse com contorcionismos esguios e equilíbrios precários. E recantos cheios de mistério que só ela conhece.

Mudanças e hesitações

Chegaram árvores aos meus dias tristes: são uma alegria. O Manuel António Pina já me tinha chamado a atenção para o livro que originou o blogue, mas ainda não o tenho: pura preguiça quando o editor é amigo.
Entretanto, o muro caiu sem estrondo. Confirma o que venho dizendo, sem espectáculo, os leitores vão-se. E se por ali ainda se tentava o circo da opinião, por aqui é tudo tão íntimo que o interesse cai como folhas no outono: tudo castanho e lamacento.

Very Important News #07

Algures no estado norte-americano da Florida, em Fort Walton Beach, um grande carvalho assinala o mercado local de droga e prostituição. O Sheriff da zona, pressionado pela “comunidade”, encontrou a solução para resolver a “constante parada de crimes e prisões”: pediu autorização para cortar a árvore.

quinta-feira, outubro 14

quarta-feira, outubro 13

A minha gata...

...dorme, dorme muito como todos os gatos assim alheios ao mundo. Recolhe-se de muitas maneiras, mas esta enrolada em esfera peluda é a mais curiosa. Às vezes brilha um olho por entre o negro: pequeno mundo curioso.

quarta-feira, outubro 6

Da casa

Restos de uma vida à espera de outra. Para que nos serve tudo quanto acumulamos?

terça-feira, outubro 5

Encontros #05

Acabo de almoçar com o Paulo e a Cristina. (Zé, tens razão: nomes próprios são melhor que siglas.) Nem todos os meus encontros são à mesa, mas muitos deles, talvez os mais intensos, acontecem aí. Se descobrir porquê, aviso. O Paulo é um companheiro de há mais de trinta anos, agora afastado para o interior, dedicado à terra nas salas da universidade, mas nunca afastado de mim. São muitas as palavras e os silêncios que nos unem. Hoje, misteriosamente passámos o tempo mastigando ideias sobre o núcleo duro ético que toma parte das religiões, para além do misticismo, o que aconteceu a propósito dos desejos de vingança e da gestão das nossas vidas (prosaicas) a partir das psicologias ou das astrologias. Dietas é outro dos temas, por ora, recorrentes e por isso houve chocolate e promessas de cabrito e outras delicadezas. Não trouxe respostas para os dilemas (prosaicos) e só guardo as promessas de receitas a provar. E a partilhar. Bem haja pela companhia e pelo prazer, digo eu. Prosaicamente.

Faz hoje anos que morreu o Júlio

O Júlio sabia que a vida era uma puta. E por isso as admirava, às putas. E delas só queria um beijo na boca. O Júlio beijou a vida na boca e descobriu cedo que o sabor era amargo. Foi à clandestinidade em nome de valores, acreditando que era quase comunista. Descobriu, cedo, que era demasiado libertário para aceitar as grilhetas ideológicas. A sua arma de mão, lâmina fria, foi o humor – nunca de algibeira sempre cortante, tão lúcido que até doía. Ainda um dia vamos acordar com uma pérola no cu e descobrir que a sua filosofia era de ponta. Este libertário romântico que não gostava de romantismo odiava o proselitismo tanto como gostava da escrita e das partidas que os dias nos pregam. Conheceu o Bairro Alto e a noite do avesso e um jornalismo feito de pessoas e imaginação. Foi o preguiçoso mais trabalhador, o mais dócil dos provocadores, o mais convivial dos individualistas. Participou de todas causas e todas o traíram, como está bem de ver. Ainda assim acreditava no que nos protegia da vida e que é a vida ela própria: as discussões, as jantaradas, as bebedeiras, os projectos, as pessoas. O Júlio ofereceu-nos uma especial inteligência. E é por isso que só a sua morte, no aniversário de uma revolução, ainda me deixa estúpido.

Encontros #04 B

Na longa conversa com o Zé e com o Paulo brotou um dilema saboroso, a propósito de críticas desenhadas por Art Spiegelman (se alguém pedir, disponibilizo também a minha primeira leitura de In The Shadow of No Towers) à gestão bushista do mundo. A crítica especializada tende a enterrar os livros em estranhas apreciações que afastam leitores, demasiadas vezes passando ao lado dos temas em discussão. É como pegar em Maus, obra magna de Spiegelman dedicada ao Holocausto e à ralação com o seu pai, e começar por dizer que algures desenhou mal um cão. A forma joga aqui com o conteúdo de modo fulgurante. Neste livro, mais do que as questões teóricas e formais, que ele nunca abandona, interessa-me ler o modo como aquele criador reporta (e daquela maneira) um acontecimento que mudou o mundo (ou, pelo menos, a sua percepção). Os encontros de que aqui vos falo, embora para eu recordar, são de puro gozo partilhável.

Media Vaca

É uma metáfora funcional: na página de entrada, metade de uma vaca ou revela o esqueleto ou liberta moscas e formigas. Os livros desta editora para crianças de todas idades, escolhidos a partir de Valencia pelo Vicente e pela Begoña, possibilitam surpresas de tipo semelhante. São cuidados, apesar de simples; são iguais apesar de infinitamente distintos; estão cheios de letras e mundos, apesar de ilustrados com saber. São livros grandes. Se alguém pedir, posso publicar a recensão que fiz para o Expresso a propósito de um belo dicionário, que funciona como jogo, no qual entraram ilustradores portugueses. Mas só se houver leitores que peçam...

Leitores

Diz um amigo, nem por isso tímido: «aquilo que está no teu blogue, só mesmo tu e talvez o PN e o JCN podem ter alguma ideia do que quer dizer. Os leitores o que pensarão? Ou esqueces-te que o blogue tem leitores? Talvez eu seja antiquado e não perceba nada destas modernices, mas se publicasse uma nota sobre o almoço diria qualquer coisa corriqueira e pouco literária como "fui almoçar com fulano e sicrano e" e aí contava mais ou menos o que se tinha discutido. Mas não vejas isto como uma crítica; o blogue é teu e fazes o que quiseres. Apenas comentei que só tu podes perceber o que lá está.»
Ora não creio que este blogue tenha leitores. Aliás, o gozo que dele retiro advém do facto de, fingindo que há leitores, escrever para mim, como em diário. Não há leitores para diários? Se calhar este, como tantos outros, é mau, umbiguista e sem sentido. A minha única pretensão era ser literariamente corriqueiro. Falhei, pelos vistos. Continuarei ainda assim em busca de uma qualquer obscura clareza. Valerá a pena procurar leitores?

domingo, outubro 3

Crítico Postal #03

A foto não vem assinada. E devia, embora nada mudasse. É uma foto de montanha. Isto é, de nuvem. Ou seja, de abismo. Ou melhor de vento, talvez voz. Só posso adivinhar-lhe o sentido, mas não asseguro. Nenhum sentido é seguro: ao baixo? Ao alto? O convite é para um livro, que há-de conter palavras e nelas acontecerão poemas de JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA. Esta voz é quase o vento. As vozes serão ouvidas no céu da boca de Lisboa, em breve. E as palavras com poemas por acontecer estarão disponíveis para entrar nas casas e nas vidas explodindo como vento. A foto é a preto e branco, como tudo o que é dramático. Como a câmara lenta que arrefece o movimento para sentirmos mais, com mais clareza, com a frescura da nuvem por dentro. A foto não está assinada, mas The Famous Grouse apoia.

sábado, outubro 2

Encontros #04

Há um lado delirante nas conversas com o PN e o JCN. Implicamo-nos como doidos nas discussões que, depois de tocarem a actualidade e a política, acabam na margem de um qualquer oceano importante. Foi assim ontem, com a tarde passada a detectar o cristalino lugar do romance, o sítio no nosso mapa íntimo para a atlântica arte de contar histórias e mexer com a vida dos leitores. Mas ainda haverá leitores?

quarta-feira, setembro 29

A minha gata...

...sofre do fascínio das malas, das mochilas, dos sacos. Contudo, não gosta de viajar. Ou será que entrando neles vai de algum modo aos sítios que ainda sobram nos cheiros das malas, das mochilas, dos sacos?

Sanfona

EGBERTO GISMONTI é um génio. Toca qualquer coisa – a voz de Olivia Byington, piano, guitarras, flautas ou explicações – de um modo sensível e reflexivo, que é suor e movimento, que é metal e borracha, que é pedra e beijo. Toca para nos tocar: a alma é um ritmo, uma pele que vibra. Ontem fui tocado com uma fala de paixão. Acho que era noite.

quarta-feira, setembro 22

Recordações dela, a velocidade


Conas

Livros há que são armadilhas. Talvez os bons sejam os que nos apanham desprevenidos algures: no momento em que avançamos pela acção fora, esquecidos já do fio das frases, líquido ou áspero, quando levamos o soco no estômago de uma evocação, uma ténue lembrança, uma reflexão ou apenas a reverberação de cristal da palavra na folha. Na múltipla escolha das vidas, também livros que nos batem mais tarde, sem explicação aparente, para nos iluminar um momento, aquecer uma tristeza ou, por comparação, que a complexidade do que vivemos está toda ali, na simplicidade de uma cena.
Conos, de JUAN MANUEL DE PRADA (Fenda), é uma surpresa, mas não é por nada disto. E muito menos porque fala de assunto arredado das literaturas: as conas, pudicamente passadas a masculino na capa, mas muito mal passadas, digo eu. Até porque uma das qualidades do texto é a sua precisão, que, como é sabido, é sempre cirúrgica (e bem vertida foi no português de José Carlos González). Há qualquer coisa de médico na frase de Prada. É fria a sua aproximação ao assunto, mas sucessiva. Sem nunca repetir a perspectiva, olha de soslaio, mordisca o assunto e depois repete. Manuseia a ironia com um bisturi, um bisturi de papel vegetal. A transparência esconde, portanto, ideias – belas e sinistras ideias, quotidianas e fantasistas ideias, absurdas e belas imagens. O todo revela-se aqui nas partes, o que é sinónimo de arte breve: um início de conto, um haiku desenvolvido (túrgido?), uma reflexão esboçada. Mas chega para criar um ambiente, apresentar personagens e sugerir erotismos dos mais puros. Prazer aqui é o da frase, o da escrita, também ela em lógica erótica sem olhar a consequências, o que, em parte, é devedor do mestre homenageado RAMÓN GÓMEZ DE LA SERNA (o de Seios, Antígona). E não olha a consequências. Mas isso que interessa? Basta o enorme gozo e a perícia. Este livro é inclassificável, como o são, a princípio, as surpresas. Bendita esta estranheza que se solta das conas. Bendita esta vontade de aprender. Do conto Refutação de Henry Miller: “A espeleologia da cona exige métodos artesanais que aumentem a tremura fervorosa das mãos penetrando num recinto cheio de estalactites e estalagmites, embalado pelo musgo tépido da púbis, ressumante de líquidos e pudor”. Bendito pudor.

quinta-feira, setembro 16

terça-feira, setembro 14

Crítico postal #02

Árvores, parapeito alinhado, vasos vazios, vários a perder de vista, e um friso de estátuas, três que parecem momentos distintos do virar-se. Isto é a primeira linha, um horizonte, digamos. Um jardim de horizontes, de linhas de terra. A foto ao alto é toda ela uma sucessão de horizontes, texturas sobre o branco. O alinhamento das cadeiras é o essencial pois convida a um livro sobre os passeios e o flâneur, que é poesia e artes visuais, que é mudança de vida e espanto. White é o nome do poeta que nos apresenta a cidade, Paris, mas podia ser outra Porto, Praga. A neve é o que aqui convida à leitura, ou até a algo mais. Um convite é um apelo e outras informações estão no verso, mas não me interessa e envolve sublimes audácias. Até as letras estão a mais sobre a foto anónima, como a neve. A imagem valia por si, sem títulos, autor ou editora. Nenhuma cidade vem nos guias. As palavras são outros mapas, mapas que se sobrepõem, como corpos. É por isso que aqui moro na cidade. Ansiando pela respiração da neve.

segunda-feira, setembro 13

Very Important News #06

Um qualquer Batman está pendurado perto de uma varanda alta em uma parede do Palácio de Buckingham. É um activista (fathers 4 justice) e pede para para falar com a Rainha. Será que ela o atende sem marcação? De qualquer modo, tem melhor gosto que ela, no que à roupa diz respeito.


Crítico postal #01

Um tabuleiro de xadrez, estático na dança de quadrados bicolores, na variação de formas agora ao alto. Dois casais enfrentam-se, olhando quem agora os olha. Espelhos, cadeiras, mesas de estilos variados mas anunciando pompa. Uma das mulheres, a única que se ergue, desafia-nos com o olhar: o pior dos desafios. Cada par de sapatos são outras tantas agulhas que prolongam o olhar até onde o permitirmos. Cabeças pequenas, rostos redondos, corpos sentados e desarmónicos, quase todos. Agulha, cada sapato como antena, braços de bússola, ponteiros de horas que deixaram de existir. O conjunto sofre de largo enquadramento de branco, desigual pois se trata de um rectângulo que absorve óleo sobre a tela. As cores são pastel e por isso vibra aquele rosa-choque que indica (autor) KONSTANTIN BESSMERTNY e (galeria) Monumental. Mais informação não se vê daqui, está no verso. Um convite é um apelo, um junte-se, um venha até aqui connosco, um venha ver, às tantas, um esperamos que compre. Este, com as suas cores frágeis sobre branco, sussurra: nós estamos aqui e aqui ficaremos indiferentes. A imagem, como a música, sabe bem mentir. Aparentemente estes nobres russos recebem bem, mas apenas para nos assassinar. É por isso que vou.

sábado, setembro 11

Sítios

Por causa do Alex, entrei em lugares únicos que, sem nada terem que ver com a actualidade, são, num caso, contributos para não nos deixarmos esmagar por apenas uma ideia de cultura árabe, e, no outro em insupeita relação com o anterior, uma redefinição constante e orgânica da imagem-feita de mulher, que pode ser resposta a esta que nos chega via Madonna, mais mental e financeira do que é comum assumir-se.

Encontros #03

Anteontem, em ritual que se repete a cada dois anos, mais coisa menos coisa, jantámos com RG. Os cabelos brancos pontuam a política afirmação dos seus olhos: é dono de intensa curiosidade, mas a emoção está domada. É que, nos últimos tempos, a sua perspectiva social, de serviço aos outros, aos outros pobres, foi-se impregnando de oriental espiritualidade. A investigação teórica não está abandonada, os seus interesses são os mesmos, mas suas interrogações estão agora cheias de disponibilidade, de paciência para o que não entendemos, para as mudanças que ansiamos.

quinta-feira, setembro 9

Munch


Ninguém nos rouba O Grito. Quem queira saber mais sobre o mundo do crime (absurdo) ou tão só sobre o mundo absurdo, é favor consultar a coluna «Crimes Exemplares», na Grande Reportagem (cada sábado, com o DN e o JN), ao cuidado de Pedro Burgos (desenho) e João Paulo Cotrim (argumento). A desta semana vai dedicada ao roubo de arte, a da próxima é sobre medicina (interna).

quarta-feira, setembro 8

Imagens fortes

A partir de amanhã e até dia 20 de Novembro, a Biblioteca Nacional, em Lisboa, acolhe ilustrações de MARIA KEIL. São originais feitos para títulos que vão de Páscoa Feliz, de Miguéis, aos Anjos do Mal que lhe apareceram recentemente. Também se poderão ver muitas das suas ilustrações para a infância e juventude. Encantadoras, digo eu.
A partir de ontem e até ao final de Setembro, o Museo de la Ciudad, em Madrid, recebe EL ALMA DE ALMADA EL ÍMPAR. São ilustrações para as crónicas e contos do escritor espanhol Ramón Gómez de la Serna, nas revistas La Esfera e Nuevo Mundo, bd’s e tiras cómicas publicadas em igual período no Sempre Fixe e no El Sol, na coluna Maestros de la Historieta. Além da preciosidade que são os originais de ilustrações para o jornal madrileno ABC e para a revista Blanco y Negro, e os seis desenhos concebidos em 1929 para La Tragedia de Doña Ajada, uma orquestração de Salvador Bacarisse para poemas de Manuel Abril.

segunda-feira, setembro 6

Da minha janela

Vejo a GNR a treinar atirando as armas em estranho ballet, ao qual os gatos do quintal, muitos e de todas as cores, ficam indiferentes. Só os tiros, secos e da mesma cor, os despertam. Por instantes (só se pensa por instantes em tais temas...), penso nos acontecimentos mortais dos últimos dias. Poucas certezas tenho, mas esta de que não nenhuma superioridade é moral ficará comigo, no meu pequeno jardim, até ao fim dos dias.

quinta-feira, setembro 2

Very Important News #05

A Slow Food, a associação que combate a fast food sob o signo do caracol, passou a incluir três das nossas obras de arte na sua lista de preciosidades: a broa de milho, o sal de Aveiro e um chouriço transmontano. Desconfio que serão apenas os primeiros sinais de excelência reconhecidos e provados.

A minha gata...

...está contente por voltar a casa. Sente-se no pêlo que deixou a agitação da vida animal na praia: pássaros, cães e aranhas estão, por ora, fora da sua agenda.

sexta-feira, agosto 13

A minha gata,

apesar de preta toda ela, não liga peva às sextas, 13. Eu gosto.

A minha gata...

...é preta toda ela.

Encontros #02

Estive antes de anteontem com TM e aconteceu aquilo que se tornou um feliz hábito. Ainda que não preparemos projectos, o que era o caso, as conversas fazem com que nos entreguemos, nos impliquemos de modo a colocar sobre a mesa perspectivas, opiniões, sensações, filosofias domésticas e credos selvagens. Regresso sempre rejuvenescido destas viagens em torno de ideias ou imagens. É raro. Cada vez mais.

Encontros #01

Estive anteontem com MK e regressei encantado com a alegria de viver e o modo de olhar ou o modo de viver a alegria do olhar ou o modo como olha a vida com modos ou o modo de alegrar a vida do olhar. Tem 90 anos muito ilustrados, esconde o cansaço por detrás da humildade que, por sua vez, esconde orgulhos de pioneira. Possui o encanto de quem faz coisas e se deixa fazer por elas. Com humana intensidade.

Da casa

Estou quase a deixá-la. Tenho saudades. Outra vez.

Da casa

As janelas que vejo da minha janela não chegam para me encher os olhos. Há uma fileira militarizada, junto ao chão dos gatos. Serão camaratas: não interessam. Ao longe, na noite só, brilha uma pequena. É a mais próxima da Lua, uma autêntica companhia. Na direita, no prédio que protege as escadas com uma curva, acontece um círculo perfeito que deixa ver alguns degraus, solitários. Nesse prédio, ilumina-se um quadriculado perfeito como manhã de sábado. No andar logo em cima vi uns olhos a estenderem peças de roupa. E depois vejo varandas.

Da casa

A televisão adoeceu, há alguns meses. Ou seja: o centro da sala deixou de respirar, de se iluminar, de comover e movimentar-nos. Pouco tempo depois, por sobre o ecrã grande cresceu um pequeno que há meses ali pousou. Não sei se é um tumor do grande ou um pássaro de arribação. Quando tiver tempo vou resolver o enigma.

quarta-feira, agosto 11

Da casa

Estou quase a deixá-la. Tenho saudades.

Da casa

Não é curioso? Pedem-me, para comprar um carro, que lhes prove que moro aqui, em casa. E se me recusassem a prova de vida, se garantissem com documentos que estou morto ou em parte incerta?

Da casa

Vejo daqui uma pele de pó sobre as coisas. Certas e quase secretas coisas que o sabem merecer, como um dom de tranquilidade.

Da casa

O Sol tem comido a ilustração atlética da casa de banho. Vou deixá-lo matar a fome de cor, quem sabe se não escrevo um conto sobre o assunto. O desperdício não me atormenta: o trabalho até está assinado, em italiano e no feminino.

Da casa

São duas as assoalhadas líquidas, aquelas onde não deixa nunca de correr água. Ouve-se, mas não refresca. O desperdício atormenta. E agora chove. Vou subir os estores e deixar as gotas entrarem.

sexta-feira, agosto 6

Um dia como esta tarde

Como acaba um dia cheio de possibilidades?
Mesma a esta, hora as sombras dançam o mambo. Só a música, só mesmo os dedos do pianista são capazes de indicar um caminho nas montanhas prediais cruzadas pelo rio do trânsito.
Um dia de possibilidades não acaba nunca.

A minha gata...

...está sempre disponível para brincadeira. Pergunta meta-difícil: jogar é a vocação do gato, com o pássaro e o rato, com a bola e a luz, com o miúdo e a mosca? Aliás, soube hoje, da pessoa certa, que Pessoa brincava doido com as crianças.

quinta-feira, agosto 5

Very Important News #04

Apesar dos fogos, da devastação, da miséria, da tristeza, na Serra de Monchique foi confirmada a presença de borboletas-monarca. Segundo os especialistas, é de prever um aumento das colonizações nos próximos anos. Naturais do continente americano, estes símbolos da fragilidade migram do Canadá para o México, onde chegam no Dia dos Mortos, para passarem o inverno. É lá, a sul, que procriam.

In Memoriam: HENRI CARTIER-BRESSON (1908-2004)

Deixas o reflexo líquido dos acontecimentos que arderam pelo século. Os rostos e os saltos do mundo são mais humanos por via das pinturas que coreografaste com uma Leica e os passos do viajante.

quarta-feira, agosto 4

Cacos

Andei enganado. Até há pouco cuidava que a mais dolorosa das mortes era daqueles que partiam: sinto a falta de muitos. Rezo os seus nomes, invoco momentos, prazeres partilhados, palavras que cresceram entre nós e floriram. Andei enganado, pois a mais dolorosa das mortes é a daqueles que, apesar de vivos, cospem a seiva da planta que é a amizade. O território onde parecia que repousávamos era caixão acolchoado, cama de passagem, sem memória. Pedaços de vidro que servem de tapete aos pés descalços, é só o que sobra, nem uma pétala ou um perfume. São tantos que só posso ter-me enganado acerca da amizade ou das pessoas. Ou de mim...

segunda-feira, agosto 2

Recorte #02

«Como jogar com as palavras»
por JOÃO MIGUEL TAVARES

Diário de Notícias, 2 de Agosto de 2004

Com o lançamento do terceiro e quarto volumes, já se pode arriscar dizer que a série «Olho Vivo» - uma colecção de livros infantis lançada pelas Edições Afrontamento - é um dos espaços de experimentação mais interessantes do espaço editorial português, quer pela qualidade dos ilustradores convocados para o projecto, quer pelo investimento literário de João Paulo Cotrim.Quem se interessa pela banda desenhada portuguesa já terá esbarrado algures com Cotrim, seja como autor, seja como crítico, seja como organizador, seja sobretudo como director da Bedeteca de Lisboa, numa época saudosa em que ainda havia meios para trabalhar. Graças à sua acção, a BD portuguesa obteve um reconhecimento inédito e alcançou uma variedade e uma qualidade sem paralelo na sua história. Nos últimos anos, contudo, Cotrim tem vindo a desenvolver uma actividade sustentada como argumentista, tanto em livro como em projectos ligados a publicações periódicas (À Esquina, no jornal Público, e actualmente Crimes Exemplares, na Grande Reportagem, contando ambos com desenhos de Pedro Burgos).Cotrim é dono de um estilo floreado, onde os jogos de linguagem são uma constante e se espreme até ao caroço os vários sentidos das palavras. Em texto longos, este tom luxuriante correrá sempre o perigo de cair num excesso de barroquismo, mas o autor tem-se inteligentemente dedicado à história curta, produzindo ora obras enxutas, ora textos onde a elaboração da linguagem se mantém vigiada, no registo certo, apostando numa poetização do real - é isso que acontece nos dois livros para crianças de que aqui se fala, O Homem Bestial e Viagem no Branco.É desde logo motivo de admiração o facto dos quatro volumes da colecção «Olho Vivo» serem muitíssimo diferentes entre si, menos pela diversidade de estilos dos ilustradores do que pela inventividade de que Cotrim dá mostras em cada texto. Com a concisão de um haiku, O Homem Bestial parte de uma ideia que sendo simples está muito bem achada - a presença de nomes de animais na linguagem do dia-a-dia. Assim se contrói o «homem bestial», que tem «olhos de lince», usa «rabo de cavalo», corre «como uma lebre» e é «mais chato que uma melga». Os desenhos de Maria João Worme ilustram o texto de forma bastante directa, ainda que a complexidade do seu estilo possa causar algumas dificuldades aos mais pequenos.Já os desenhos de Miguel Rocha em Viagem no Branco são de mais fácil leitura, embora ele tenha optado por um registo estranhamento sombrio para um livro com tão alvo título. Aqui, é o texto de Cotrim que se complexifica, multiplicando os níveis de leitura. Desde «as árvores onde nascem as folhas de escrever» à rã descoberta no «b(r)anco», é todo um mundo poético que se abre aqui, com um toque surreal que resiste às apropriações de sentido. Francamente, não sei quantas crianças serão capazes de compreender isto, mas não há como negar o seu engenho.


O homem bestial Autores. João Paulo Cotrim e Maria João Worm Editora. Afrontamento Páginas. 32 Preço. 7,50 Classificação. ¢¢¢¢

Viagem no branco Autores. João Paulo Cotrim e Miguel Rocha Editora. Afrontamento Páginas. 28 Preço. 7,50 Classificação. ¢¢¢¢

sexta-feira, julho 30

Reflectório

Foi a Cristina Sampaio que me chamou a atenção para o passo que a Anabela Natário deu para além das palavras. Depois das reportagens para o jornal Público sobre a movediça cidade de Lisboa, desatou a compor um reflectório  a partir da subtil marca da cidade nas suas coisas. O resultado tem tanto de fascinante como de assustador. Nada é apenas o que parece. Os objectos que habitam as paisagens urbanas são espelhos temíveis que nos empurram para realidades de feroz lirismo. É bom que ainda haja gente atenta aos fantasmas que passeiam entre nós e o mundo. Como gota rebelde de suor.

quinta-feira, julho 29

Chumy e os epitáfios

Por falar em países vivos, trouxe da caliente Madrid o livro-catálogo dedicado pelo atentíssimo amigo Felipe Hernández Cava a Chumy Chúmez: el descreído imaginario. Chumy recebeu, no ano passado, a morte que andava a desenhar há tantíssimos anos. Essa é a primeira impressão a retirar do seu trabalho brutal, espalhado por algumas das melhores páginas vizinhas (La Codorniz, Hermano Lobo, ABC, Diario 16, etc.): a morte anda connosco desde que nascemos. Chumy Chúmez, que colocava um sol pequenino nos seus cartoons que às vezes parecia um buraco de bala, diz-nos que devemos dialogar o mais possível com essa companheira. Ele fê-lo, rindo do modo como vestia ou se comportava, daquele ar escanzelado com que nos aparece. A outra lição filosófica está na estranha relação que o desenhador teve com o seu país feito de países. Ao contrário do que diz personagem sua, que «os humoristas sabem rir-se das desgraças alheias», os humoristas verdadeiros fazem suas as desgraças dos outros. Chumy Chúmez achava que, mais do que piadas, o seu trabalho era fazer epitáfios.

Valerá a pena aplicar estes ensinamentos ao meu tristonho país, apesar de estar a léguas do humorismo (o meu sentido de humor é mais na base do sinto muito...)?


Capa minha amiga

Ontem encontrei um «autor do nosso tempo»: a primeira tradução de Raymond Queneau (Manuel Pedro, 1961). Trata-se de Pierrot Meu Amigo, pela Editorial Minerva. As páginas estão virgens (o gozo que me vai dar soltá-las, como asas). Queneau é daqueles autores (não serão todos?) que devem ser lidos no original, embora uma boa tradução possa ser um jogo. Comprei este porque a capa é do Sebastião Rodrigues. Abençoadas mãos que tão belos rostos deram a tantos livros! Sarah, no meu país, os livros começam nas capas.
(É grande a tentação, mas prometi a mim mesmo que só coloco imagens no regresso de férias, lá para Setembro. Resistirei?)

A minha gata...

...caça murmurando. As pombas respondem-lhe com indiferença e sobranceria. De olhos fechados, a gata sonha com asas sabendo que se as tivesse deixava de caçar.

Correio do Brasil

A imprensa nacional, que anda triste e sem alma, ficou mais pobre. Circula a partir de hoje a última edição do Correio do Brasil, espécie de transatlântico a unir dois povos que tanto se estimam quanto se ignoram que durou 24 viagens. A primeira página é negra e sussurra apenas a palavra fim. Mas tinha que lá vir um asterisco prometendo que o fim é tão-só da primeira parte. Conhecendo como conheço a directora, a Paula Ribeiro, não tenho a mínima dúvida que é verdade. Lamenta-se a cegueira destas empresas que sujam páginas na vez das imprimir. E espera-se ansioso o regresso, que nós bem precisamos de notícias sobre países vivos.

segunda-feira, julho 26

Mundo de músicas

Aí está o fim de Julho e com ele chegam, ali a Sines, a elegância comovente de Rokia Traoré e o absoluto desconcerto de Tom Zé. Com estes dois, do Mali e do Brasil e de sítio nenhum, floresce a poesia do desejo, o calor da reflexão, o som apesar de todas as geografias, a palavra que perturba, puro encantamento.

sábado, julho 24

In Memoriam: CARLOS PAREDES (1925-2004)

Este ano é um cemitério, mas recuso-me a acreditar na morte. É uma tentação, sublime, até. Mas enquanto os sons tiverem esta força de cidade, enquanto soar a suor, enquanto este génio souber ser simplicidade e resguardo íntimo, enquanto isso acontecer ergue-se uma parede oca de madeira que tudo aguentará. As cordas servirão para subir a vida a punho com unhas e assim o esforço soar melodia, triste, sentida. Há vida apesar da morte.

quarta-feira, julho 21

Recorte #01


«4 blocos para viajar aos poetas »
 
Por
PEDRO MOURA
Público.pt
Sábado, 13 de Junho de 2004
 
 
Num pequeno "guia orientador de leitura" intitulado Viajar nos Livros, editado pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas no ano de 2003, a autora Alice Vieira apresenta uma escolha de alguns livros indicados à leitura dos "mais jovens" que falem de viagens, umas mais inventivas que as outras ou que sirvam para viajar. Apesar da própria autora se precaver com a advertência de que qualquer selecção é "subjectiva", não pode essa servir de obstáculo a que se teçam críticas à mesma. E ainda que qualquer selecção possa ser discutível, a ausência de Alice (ou diria das Alices?) é um gritante silêncio. Tentativa de evitar a homonímia? Os novos livros escritos por João Paulo Cotrim também não se encontram nesta lista. Quero crer que se deve ao facto de serem todos demasiado tardios para terem sido incluídos na escolha - os dois primeiros, História de Um Segredo, com André Letria, e A Cor Instável, com Alain Corbel, são de Fevereiro de 2003. Mas algo me impele para um modo de ver que o critério da viagem pode ser sempre alargado... A discussão poderia começar com a afirmação de A. Vieira em que, "Infelizmente a literatura portuguesa não é muito rica em livros de viagens." Como? É verdade que poderão existir sub-categorias deste género literário mais representado que outros, essa afirmação não é verdadeira, tendo em conta o enorme e rico espólio desse mesmo género, aliás sobejamente estudado entre nós. A redução não deixou de ser feita.
Já na seguinte publicação do mesmo instituto, Portuguese Children's Books, em inglês para divulgação internacional (e a propósito de candidaturas portuguesas ao Hans Christian Andersen Award 2004), com uma selecção assinada em conjunto, mas com o indelével cunho de Luísa Ducla Soares, já surge A Cor Instável.
Estes quatro livros - para além dos já citados, há O Homem Bestial, com Maria João Worm, e Viagem no Branco, com Miguel Rocha - são apenas os primeiros editados na colecção Olho Vivo da Afrontamento, já que Cotrim promete ainda ofertar-nos mais uns quantos volumes, "para acentuar a ideia de colecção", diz o próprio. Canção da Rocha, da Onda e da Nuvem com Tiago Manuel e A Máquina das Asneiras com Pedro Burgos são para já promessas a cumprir, mas outros episódios que desdobrarão este projecto - de mais de cinco anos na calha - também se esperarão.
Será uma terrível redução dizer que estes são livros infantis; mas também não é daqueles casos em que se pode dizer que "tanto gostam os miúdos como os graúdos". Há aqui uma vontade de inaugurar uma porta relativamente nova. Em Portugal, poder-se-ão apontar variadíssimos registos de literatura versada para públicos mais jovens, os que começaram a ler faz pouco, os que querem aprender a ler mais, os que ouvem histórias lidas pelos pais. E existe uma grande diversidade e níveis de atenção. A publicidade continua, porém, a ser feita sobretudo aos ineptos e inanes livros que têm uma "lição", uma "moral" ou a partir do qual se poderá aprender a fazer qualquer coisa de "útil". Livros que pretendem sempre ensinar algo de imediatamente aplicável na mais chã das realidades e da vida das crianças.
Não é este o presente caso. A utilidade máxima destas quatro (e mais, como vimos) aventuras autoradas por João Paulo Cotrim e os desenhadores respectivos é a de viajar para dentro. Não quero com estas generalizações sobre o trabalho gráfico menosprezar, de forma alguma, o trabalho de cada um dos desenhadores, já que as parcerias foram sentidas e não ocasionais ou circunstanciais, sendo cada uma das pequenas narrativas especialmente bem associada à expressão gráfica típica de cada desenhador. O ponto de partida foi sempre uma relação pessoal de Cotrim com o desenhador em questão, e não se trata da prioridade de um criador sobre a de um outro, mas uma verdadeira experimentação de conversa criativa a dois.
Porém, se existe algum ponto em comum nos quatro volumes, é o movimento: um movimento contínuo, em espiral, cada curva e virar da página mais rico que o anterior, aparentemente uma repetição de uma ideia, mas já mudada no seu sabor. Move-se um segredo, move-se a cor, move-se a comparação.
Duas das histórias, nomeadamente A Cor Instável e Viagem no Branco, têm dois teoremas que se anulariam numa mesma plataforma: nomeadamente de que "nada é a preto e branco" e consequentemente "cada um pode ser arco-íris" e a de que "É à noite que deixa de haver coisas porque não há luar. No branco há imensa coisa!" Mas, para além do facto de que cada livro vale por si, e que os autores são livres de vestirem tanto a pele do lobo como a da ovelha, a verdade é que o contador de histórias aqui está próximo da fórmula introdutória clássica dos contos ciganos: "Era e não era." Porque o mundo é enorme e há espaço para tudo e para todos os seus contrários. O Olho Vivo de todos estes autores vai encantando-os a todos...
           
 
História de um segredo, A cor instável, O homem bestial, Viagem no branco.
AUTORES João Paulo Cotrim (textos) e, respectivamente, André Letria, Alain Corbel, Maria João Worm, Miguel Rocha (arte)
EDITOR Afrontamento
35, 33, 31, 29 págs., 7.50 Euros

quinta-feira, julho 15

Mais pobres

As minhas recentes viagens pela blogosfera perderam dois pontos de apoio. Os companheiros calaram-se e a formiga resolveu parar. Até a Ma-Shamba se deixou de cultivar Os dias ficam mais solitários, saberei menos das coisas.

terça-feira, julho 13

Da casa

De tanto por elas passarem, sei que mudam as estações pelo ranger das portas. Não coincide com equinócios e outras medições do trajecto da Terra ou do Sol, mas as dobradiças assinalam o tempo que escorre com gemidos e murmúrios e rangidos e mais lamentos. Explico-lhes em silêncio que nada mais se pode além de rodar em frente. Não me levam a sério.

Amizade quente

Só quem ignora o Alentejo desconhece esta sabedoria. Este calor que se instala entre nós e as coisas é o da amizade. Neste estado apolítico e amoral, todos perdem a inclinação para o Mal. A energia que nos resta, em roda de amigos silenciosos, deve ser aplicada no braço para que este, em esforço tremendo, alcance a “mine”. A única exclamação permitida é o “esssstá” do céu da boca a saudar o céu do malte contente por estar vivo em boa companhia. Escusado será dizer que tenho saudades.

segunda-feira, julho 12

A minha gata...

... há duas semanas que insiste em fechar-se no armário da roupa arranhando as gravatas. Lambe-se depois e dorme. Estou arrependido por ter-lhe falado da crise.

Rapazes de água

A pele do tambor dos Waterboys tinha um espírito. Por vezes sou assaltado pelo trompete que me atira por sobre a falésia junto ao mar. Soa de modo humildemente imponente e atira-me para um Alentejo interior, meio esquecido que me sabe a velho. Esta lua aluada atira-me para fora de mim, que é o melhor lugar para se estar, aí onde a planície se impõe com os sobreiros e as cigarras. As cordas dos Waterboys desfazem quaisquer inimigos, sejam eles os próximos. O pior dos dias de hoje continua a ser a morte dos lados B. Eles eram a prova de que o lado B era uma filosofia de vida.

In Memoriam: MARIA DE LOURDES PINTASILGO (1930-2004)

Nome de pássaro dá nisto: voo de surpresa, como aconteceu teres sido tantas vezes. Se algum dia a política foi lugar possível dos impossíveis, se a Igreja foi próxima, se a mão tocou o coração e a generosidade partiu do pensamento, foi contigo. O futuro não será sem ti.

Escapadela

Salto de um quadro para dentro de um filme. Explico: estive em Madrid e enchi-me de belas imagens. Seria longa como uma avenida a lista. Escolho «O Homem Branco», do expressionista Feininger. Um magro de cachimbo que parece atravessar um vulto negro, em segundo plano. Ao fundo, um edifício, alto e feito de vermelhos. A cidade é um homem elegante de gravata e cachimbo, mas também um vulto negro entre o azul e o vermelho.
O filme faz-se ao pé do meu regresso a casa. No largo, alguém continua a simular vezes sem conta o momento seguinte de um acidente violento. O homem careca desce a correr para o corpo que se projectou do carro. Grita-lhe o nome. Quase acredito que o choque brutal acabou de acontecer, algures entre o azul e o vermelho. Vejo, na varanda, um vulto branco expressionista.

Desgosto

Para este nosso último primeiro, a palavra elegância está sempre à língua de semear. A elegância é, ao que parece, uma qualidade. Segundo livro grande das palavras o nosso último primeiro quer dizer graça, gentileza, distinção de maneiras, gosto apurado no trajar, delicadeza de expressão, harmonia. Gravata azul e cabelo cortado não o salva no trajar. Repete demasiados chavões com polegar atirado para trás para nele detectar delicadeza de expressão. Distinção de maneiras talvez lhe encontrem as damas com quem gasta as noites. Também não lhe encontro graça, menos ainda quando ri. Gentileza há-de ser a fingida pelo trato polido da política: soa a oco, como estuque. Não lhe encontro, pois, harmonia que justifique a elegância. Em desarmonia, no livro grande das palavras, mora em página perto o significado de eleição.

domingo, julho 11

quarta-feira, julho 7

Desastre

Como álcool na ferida: a Arrábida está a arder.

Palavras

Só encontro uma virtude nesta crise, embora confirme o que há muito sabíamos: um político diz qualquer coisa e o seu contrário, com horas de diferença. Em nome de uma ideia? Não. Para manter o poder, por minúsculo que seja. Até diz, olhos nos olhos, do seu desapego ao dito poder em nome de causas. As palavras, de tanto tombarem, um dia partem-se.

domingo, julho 4

Sol e Sombra

Por estes dias, o Presidente Sampaio, que balança entre solução de crise e euforia de vitória, devia gastar algum do seu tempo lendo o romance negro de Jacinto Lucas Pires, Do sol (Livros Cotovia, 2004). Boa parte das respostas estão no diagnóstico, e, apesar de o esquecermos, a literatura é uma radiografia. Este país não está luminoso, embora nunca o tenha estado excepto em cartazes de propaganda. Se lidas em contra-luz, estas páginas indicam, entre outros cancros, distúrbios mentais na esfera do poder. É um livro que merece ser discutido. Fica prometido.

Da casa

O escritório atingiu o limite. A minha ginástica diária é feita de perigos: o pulo elástico, o emagrecimento súbito, o alongamento excessivo, a elevação sem limite. Nem sempre os movimentos correm bem. Mais fracassos, pois há considerava perdida a ideia burguesa de confinar os livros e os papéis a uma assoalhada, que tal seria se chão se visse. Para multiplicar as paisagens e o entendimento dos lugares, os livros precisam de se instalar em nós. Aliás, a desarrumação tem o charme desfeito de um monumento orgânico, um altar instável onde sacrificar a cada instante a eficácia.

sábado, julho 3

Sophia

Página após página descobriste a raiz do teu nome mergulhada em nuvens de mármore e brisa. Guardo a palavra, por ora justa e grega.

A minha gata...

...sabe sonhar longas viagens sobre as roupas gastas pelo dia anterior.

Meia idade para a frente

Fiz as contas: tenho uma dezena de projectos e nenhuma vontade para amanhã.

Meia idade para trás

Visto daqui não há nada. E agora, que passo dar?

Very Important News #03

Não se deve mostrar um escritor neo-realista nu, de boina e livro. Alves Redol, na visão de Lagoa Henriques, em Vila Franca está assim e sentado, a invocar as rochas e o mar da Nazaré. Para a CDU local, é “de um desprezo total por um escritor vila-franquense” pois a boina “nem sequer é a tradicional catalã que Alves Redol usava”. O PS local também não consegue ver o escritor “naquela figura”. A presidente da Câmara, Maria da Luz Rosinha, diz que a cidade se orgulha da obra: “A liberdade de criação não se discute”.

sexta-feira, julho 2

In Memoriam

Morreu Brando e lembro-me de Corto. Morreu Sophia e guardo a palavra. Por ora, mar.

quinta-feira, julho 1

Very Important News #02

O artista e fotógrafo norte-americano, Tom Forsythe ganhou o processo que a Mattel lhe tinha movido por infracções ao copyright, tendo o juiz sido bastante claro: qualquer artista pode gozar com a Barbie. Forsythe tinha feito 78 fotos provocadoras da boneca. A decisão é justa. Um mito da beleza não pode estar escapar assim, sem mais nem menos, ao olhar dos artistas.

Very Important News #01

O Guiness Book of Records, que conserva uma parte feroz da memória do mundo, tem uma nova categoria: “mensagens de telemóvel”. Kimberley Yeo, de Singapura, demorou 43, 24 segundos a escrever no teu telemóvel: “As piranhas de dentes laminados do género Serraslamus e Pygocentrus são os peixes de água fria mais ferozes do mundo, mas, na verdade, raramente atacam o homem.”

Atmosférico

Algum efeito há-de ter tido o grito síncrono e continuado de milhões. Ontem, é claro.

terça-feira, junho 29

Talvez

Sinto-me The Laziest Girl in Town. Não é comum, Nina, sentir-me assim, mas que queres que faça? A tua voz vai bem com o calor e a situação não tem rima possível. Talvez haja algures uma história terrível para contar, mas esta girl está sensível, só lhe apetece chorar. Então porque não choras, perguntas tu, habituada ao blues de terra, sujo e irremediável? Miúda preguiçosa não tem lágrimas, só suor. Amanhã, se for outra coisa qualquer, talvez cuspa a raiva das lágrimas. Talvez.

domingo, junho 27

Moscas

É capaz de haver um outro modo de fazer política, em torno de ideias e causas, mas não encontro o sítio no mapa. Com ensurdecedor zumbido, caem-nos as moscas no gaspacho. Aquilo que era anunciado, até há dias, como desígnio e projecto, passa num ápice a mero cargo, transmissível em herança ao mais triste dos nossos políticos. Não é que eu acreditasse nalguma das palavras laranjas (amargas), ou noutros frutos maduros, mas representado assim é mais um acto de teatro do absurdo. Zumbem, para um lado, apressadas opiniões, entre o sussurro conspirativo e, para outro, elogios em nome dos (amargos) interesses do país. Até o mais alto cargo da nação, em tom ruivo, veio dizer-se agoniado por toda a gente discutir como se ele não existisse. Será que existe?
Não posso deixar que isto me estrague o futebol, até porque laranja é cor que anda por aí em festa.

sexta-feira, junho 25

quinta-feira, junho 24

A minha gata...

...sabe ser só um olho, rente ao chão, ao dobrar de uma esquina. E de nada faz uma esquina.

quarta-feira, junho 23

Para acabar de vez com o dia

As nossas noites, minhas e de um ou de outra, hão-de ser as do tudo é possível. Nos dias em que tremia com a possibilidade de um beijo, a noite era o meu território. Nem as tardes de sábado, nem o escuro das danças, mas a noite que vinha mal os olhares trocados cobriam o Sol era o palco do meu teatro. Eu que não danço dançava, e a minha conversa interpretava, como ainda hoje, o tonto bailado de uma história sem nexo.
Como se falasse de sexo, os projectos mais doidos, a crença numa maneira de escrever ou num logotipo de revista aconteciam em plena noite, jamais turvada pela lúcida liquidez da distância que tínhamos de andar ou do álcool que bebíamos. Pouco importava se era numa cave solar ou no fazer de caminhos sobre a mais alta colina de Lisboa, querer andava misturado com o fazer e por isso as longuiiiiiiiiiíssimas noites eram iluminadas pelo mais inesperado dos sons ou das imagens ou das palavras.
A noite dentro do trabalho por acabar, do escrever à mão, do bater à máquina, do passar ao computador há-de ser sempre a noite, ainda que o Sol ilumine de vermelho cada uma das telhas vermelho tijolo. Só a ausência de luz permite a solidão que origina a criação. E a preguiça, pois a noite é todas as noites inutilidade, ronha e desperdício, senão mesmo crime. Para que serve o sono senão para dar à alma uma oportunidade de preguiça? O descanso é a miséria do futuro, mas o trabalho é a ocupação dos tristes. O sono é uma derrota. De olhos abertos, quando os outros dormem é a máxima para os que, mesmo quando os candeeiros se apagam, lhe bastam os mínimos para se conduzirem pelas ruelas obscuras.
As confissões mais lamechas e tontas, as lágrimas mais sentidas são vertidas no coração da noite. Nessa altura, e só nessa, músculos como o coração se sabem soltar e exercitar. Somos mais fortes durante a noite, mas também somos mais nós. É por isso que choramos, quando a amizade nos fere ou quando a surpresa nos dá nós.
A vida sabe ser um enjoo e daí que os vómitos mais fundos, mas também os mais fecundos, sobre a humana condição, surjam nas navegações noctívagas. A sensação amarga de nos cuspirmos é uma metáfora do desejo. É tanta a vontade de abandonarmos o navio-corpo ou a viagem-vida que nos surpreendemos com a energia do rasgo, com a força que parece vir do nosso centro mais profundo, mas que é só estômago. A digestão dos dias também parece arrotar nos sonhos, mal a luz se ausenta para parte certa.
Por tudo isto, e mais alguma coisa, a noite é, como só no feminino, a suprema surpresa do amor, o sopro perfumado da inspiração, a mais fina concentração, a mais impossível das possibilidades. Por tudo isto vos digo que a noite está em vias de extinção, agora que ela chega de mansinho.

Descrição 06

Voam papéis entre os olhos e o mundo. Agarro um desses folhetos, prospecto de rua. Que anunciará? Tudo é possível: reveillons, promoções de bacalhau, cartomantes e videntes, cartas de condução, restaurantes e vídeo-clubes, roupa e andares, concentrações, festas populares, cabeleireiros, serviços de construção civil, lavagem automática, saldos, pronto-socorro e móveis, alumínios, escapes e explicações, supermercados, talhos e seitas, remédios para o reumatismo, viagens. São tristonhas evocações do chumbo que se rasgam em tamanhos variáveis, mas que raramente se agigantam. Por ser pequena a gramagem, à beira da transparência, esvoaçam como folhas de um estranho Outono. Variam as cores entre o pálido discreto e o berrante inusitado. A ilustração é rara deixando a filetes, setas e estrelas, e restante catálogo de tipos a base da arquitectura. A composição resulta de saboroso caos surrealista: as letras obedecem ao critério maior de desperdiçar toda a sobriedade, de querer experimentar tamanhos, condensados e boldes, times e futuras, o máximo de sensações em um rectângulo. Comove-me esta crença na força da palavra: A sua vida nunca mais será a mesma depois de...

segunda-feira, junho 21

Dia seguinte

Este país merece uma alegria assim sofrida e engasgada. Por uma noite não houve estranhos, todos se saudaram.

A minha gata...

...assustou-se ligeiramente com a festa, ela que não vai em grupos. Depois de algumas festas adormeceu sobre si.

domingo, junho 20

Mais perguntas, afinal com resposta.

Por que são anónimas as perguntas sem resposta e só voam com rede? Segunda tentativa séria de responder ao que aparece.

12. Porque é que abreviatura é uma palavra tão grande?
As palavras, como as heras, crescem para além dos pontos finais.

13. Porque é que as lojas 24 horas tem fechaduras nas portas? E já agora, porque é que tem portas?
Nunca se sabe o que chega na última hora.

14. Como é que se deita um boomerang fora?
Atirando-o para a fogueira.

15. Porque é que nos anúncios a pensos higiénicos, utilizam líquido azul?
O sangue menstrual é um produto de limpeza.

16. Depois de comer, os anfíbios precisam de esperar três horas para sair da água?
Trinta minutos é suficiente, o tempo líquido é diferente e o peixe digere-se bem.

17. Os sinais que dizem, “Proibida a entrada de animais, excepto cães-guia”, são para o cão ler ou para a pessoa cega?
Para os outros, que parecem cegos, não desatarem a ladrar. Os cães-guia vão a todo o lado sem pedir licença.

18. A gravidez de uma prostituta é acidente de trabalho?
Não, da mesma maneira que a de uma ginecologista também não o é. São profissões que trabalham em locais onde os outros têm prazer, apenas isso.

19. Qual é a ideia de esterilizar uma agulha a um condenado que vai receber a injecção letal?
Para que o Estado não fique com a consciência suja por mais esta morte "limpa".

20. Como pode o Pato Donald ter sobrinhos se não tem irmãos? !
Ora! É do jet-set de Cascais.

21. Porque é que um polícia deve dizer a um surdo-mudo quando o prende que ele tem o direito de ficar calado?
São os direitos inúteis da democracia: se o homem tem as mãos presas, não vai dizer nada contra si próprio.

22. Porque é que o Batman usa as cuecas por cima das calças?
Julgas que é fácil mijar em voo?

Da casa

O laranja é uma das cores. Deve tal escolha para lugar higiénico ser considerada suspeita?

Parar para pensar

É raro, mas a televisão reflecte-se. Acabou de ser emitido mais um excelente programa, Arrêt Sur Images, onde a equipa liderada por Daniel Schneidermann escalpeliza os processos e os modos como a televisão trata os assuntos, desta vez, as vítimas. O programa não simplifica nunca, mas retira-se como conclusão que as televisões gostam de vítimas e que há uma vitimização compulsiva. Se nem sempre o assunto passa pela televisão, as imagens estão invariavelmente sob análise, com saber e sabor. O programa, muito originalmente, oferece-nos até a possibilidade de o vermos por inteiro on-line, sem os cortes da realização. Cai, aqui e ali, no jeito francês da militância, mas não deixa de ser reduto de inteligência, portanto a pedir discussão. E utilíssimo, pois todos somos abusados pelas imagens. Abusados e abusadores.

Desejo (quase) matinal

Espero que mais logo a festa aconteça, como aconteceu ontem no espantoso Holanda-República Checa: cor, alegria, vontade, movimento, inteligência e golos.

sábado, junho 19

Aritmética de morte

O relatório da comissão de inquérito norte-americana aos atentados de 11 de Setembro tem vários detalhes assombrosos do ponto de vista político, mas não é nessa discussão que quero entrar. A guerra tem milhares de anos e práticas, numerosos teóricos e celebrados praticantes, e a violência mais ainda. Talvez não haja, portanto, surpresa nesta cena de uma macabra peça. Algures numa base da Al-Qaeda, no Afeganistão, «os recrutas eram livres de pensar criativamente em formas de cometer assassínios em massa». Excluamos agora a ideológica escolha das palavras, para nos concentrarmos nesta tenebrosa imagem de um brainstorming de morte, com os “alunos” a disputarem entre si a criatividade de um mal maior feito de mortes inocentes. Ser capaz de reduzir o outro a este nada é a vitória do terror. Ora a cultura árabe (a quem se atribui a invenção do zero, por junto com a Mesopotâmia...) não tem, longe disso, este exclusivo – não esqueçamos Hiroshima. A fractura civilizacional está, pois, na recusa da violência, no reconhecimento do outro como igual, na interrupção desta aritmética de morte. Há que começar algures em nós.

quinta-feira, junho 17

Perguntas, afinal com resposta.

Por que são anónimas as perguntas sem resposta e só voam com rede? Primeira tentativa séria de responder ao que aparece.

1. Porque é que tudo junto se escreve separado, e separado se escreve tudo junto?
Porque nada nos separa da escrita.

2. Porque é que os números marcados por engano nunca estão ocupados?
Porque muitos são os chamados e poucos os que atendem.

3. Se a Barbie é tão popular, porque é que se tem de comprar todos os amigos?
Porque todos temos um preço, caro amigo.

4. Se uma das nadadoras de natação sincronizada se afogar, as outras também se afogam?
Claro, noblesse oblige. Pois se o inferno são os outros!

5. Se tentares falhar e conseguires, foi um fracasso ou um sucesso?
É a vida: um fracesso!

6. Se a “caixa negra” nunca se danifica com a queda do avião, porque é que todo o avião não é feito de “caixa negra”?
Porque precisa de voar. É mais fácil encontrar o erro (depois), que evitá-lo (antes).

7. Se os psíquicos conseguem adivinhar os números do totoloto, porque é que ainda estão todos a trabalhar?
Os jogos de azar não dão sorte a ninguém. A não ser aos donos do casino.

8. Como é que se escreve zero em numeração romana?
Com espada e de quadriga. Os números imperiais são brutos.

9. Porque é que os sumos de limão são feitos com aromas artificiais e os detergentes de loiça com limões verdadeiros?
Queres mesmo saber a verdade, encardido?

10. Porque é que os pilotos Kamikaze usavam capacete?
Para não morrerem antes da hora marcada e fora do lugar.

11.Uma tartaruga sem carapaça é sem abrigo ou está nua?
Nada disso. Trata-se de uma espécie rara, mais veloz do que a própria sombra.

quarta-feira, junho 16

Da casa

Não deixo de me surpreender a cada vez que descubro mais molduras românticas – as que esperam, cegas, a fotografia exacta.

A B e C

O que temos que encontrar nunca está no sítio onde o procuramos. Lágrimas Negras, encontro do pianista cubano, Bebo Valdez, com Dieguito el Cigala, cantaor , não deve ser procurado na prateleira deserta e poeirenta (por que são todos os desertos poeirentos?) do Flamenco, algures nas traseiras da Música do Mundo, como teimei e quase me perdi (seria mau, perder-me por ali?). Com grafismo luxuosamente discreto assinado pelo estúdio Mariscal, o que não é de somenos, está no top dos mais vendidos é extraordinário. Quer isto dizer que nos atira para fora do ordinário, memso estando entre os mais vendidos, assim e com simplicidade. Primeiro dado, um tem oitenta e tal anos o outro é novo, mas qual deles é o quê neste prazer e entrega? Estão ambos por inteiro, ali compondo mundos. E tocam-nos. Não é estranho interpretarem o amor e o sofrimento, a separação e o desejo com alegria? Estão separados por oceanos, por estilos e temas, mas juntam-se nestas diferenças. Como a imagem gráfica, tudo é bom gosto: alinhamento começa com B & C, com pouco mais, entrando depois em palco um (saxofone) e outro instrumento (violino) até que entra, no final, Caetano Veloso e a poesia do português. Nada nos distrai do essencial, o piano refrescante correndo como rio, dançando em torno da voz que voa, rouca, esforçada e hesitante: cantante. «Meu coração não se cansa/De ter esperança/De um dia ser tudo o que quer» E que tem isto a ver com futebol? Toda a vida tem a ver com a bola. Descobri tarde a metáfora, mas foi a tempo. «Meu coração vagabundo/Quer guardar o mundo/Em mim» Abre-se o chão a meus pés.

terça-feira, junho 15

Castelo Negro

Chega-me o olhar do Paulo, de um Castelo Branco só de nome, e percebo que a nossa derrota não tem a ver com futebol. «Daqui avisto pela janela as frontarias dos prédios ao sol do meio da tarde. Aos seis meses de inverno sucederam os seis de inferno e os incêndios já se espalham um pouco por todo o lado anunciando outro inferno dentro do inferno, como no inferno passado.» E o pior é a minha impotência televisiva.

Cansaço

Nem todas as árvores morrem de pé, algumas tombam com estrondo. Viu-se ontem no Porto.

segunda-feira, junho 14

Da casa

Por esta altura não há vazio. Sem pedir licença, o calor ocupou o pequeno mundo à volta. De nada servem os protestos: nem o gemido das dobradiças, os estalidos do soalho ou o ranger dos móveis e muito menos o sopro das ventoinhas. Veio para ficar entre nós e as coisas.

Sargaçal

Há uns meses, a propósito de correcções, recebi um e-mail do José Rui Fernandes: «Catar gralhas é um trabalho que nunca acaba. É como plantar árvores – ainda tenho 119!» Um pouco mais adiante lia, pasmado. «Plantei uma Sequoia Gigante de semente e tem neste momento uns dois ou três cm. Não é fantástico pensar que pode viver uns 3000 anos e crescer uns 120 m? Daqui a dois anos conto metê-la na terra.» Desde então passei a querer saber das árvores, seres que muito admiro e que sinto não estimar nunca suficientemente. E as nossas árvores?, fui perguntando para me comover com as respostas. «Lá andam. As de fruto estão todas a rebentar. Castanheiros vou plantar os últimos trinta para este ano. Ainda vou ficar com 25 em vaso porque o tempo passou e eles estão a despertar para a Primavera. Fica para o ano. Além disso, ainda tenho 26 Liquidambar e cinco Bétulas (ou serão Faias?) – mas tenho ainda de preparar o terreno. E fico por aqui para este ano. No total quase 200. Foi bom apesar de tudo. Tenho no frigorífico uma série de sementes para ver se germinam e se as coloco daqui a dois ou três anos. Espécies extraordinárias, como a mencionada Sequoia, Metasequoia, diversos Acers, Cupressus e outras.» Para alguém que raramente deixou a cidade, ter uma floresta em potência no frigorífico é motivo de contínuo deleite. Todos estes nomes entraram em mim com a estranha potência do sonho. O José Rui e a Susana trouxeram agora o Sargaçal não apenas para o ecrã, para o interior das memórias, mas para a minha geografia pessoal. Eles vivem no Grande Porto, mas investiram em terra mais a Norte com um amor único. Vou acompanhando cada aventura como a novela que é, de facto. O José Rui revelou noutros projectos, como a Mundo Fantasma, ou a Mais BD, uma capacidade muito própria para o detalhe. Para mim, é um deslumbramento saber dos nomes científicos dos fetos (também gosto imenso destes velhos, Zé Rui!), ou que há uma sociedade (quase secreta) de interessados, admirar o escaravelho verde, saber que ainda há quem lavre, o avanço e recuo dos trabalhos, a atenção às práticas ecologicamente correctas, o cheiro do rio e até as marcas das ferramentas. Notem bem o sabor dos nomes simples que surgem nos sítios: tapada, tanque, largo, estradão, lameiro. Sugiro que, na mesma linha de simplicidade, abandones essa terceira pessoa e tragas o eu para a conversa. Ficamos assim a saber a quem pertence o olhar que nos apresenta este mundo de aventuras.

domingo, junho 13

A minha gata...

...não reagiu quando lhe disse que a Alice está há horas a parir uma ninhada de gatinhos cor de mel, com traços variáveis de cinzento. Assuntos felinos e programas de vida animal não lhe interessam.

Vidinha

Não é o primeiro amigo admirado com a minha «recente blogomania». Mas este é um navegante experiente destas águas em rede que me diz serem os blogues, com uma ou outra excepção, «uma perda de tempo assinalável». Não acha piada ao Muro, por razões de opinião política, parece-me. Diverte-se com os Crimes. E este? «É mais melancólico que a tua gata – ou és tu? É engraçado que contrasta bastante com a imagem que tenho de ti, cheio de projectos e dinâmico qb.» São questões pertinentes, os blogues e o que faço dos meus dias. No primeiro caso, eu próprio estou admirado e confesso que não sei quanto tempo aguentarei. Resisti muito até que, sem pensar nas consequências, arrisquei fazer aqui o sempre adiado diário, para o qual não tinha arranjado ainda vontade ou disciplina. É certo que a versão blogue ganha certas características e perde outras. Mantém o registo de detalhes destinados a perderem-se, introduz o tempo mais pausado da reflexão. Todavia, por ser imediato e aberto, alguns dos temas com cabimento em diário de papel devem aqui ser filtrados. Também pede sugestões informativas, na ilusão de participar no tempo real e na realidade deste tempo. Não conto que fique assim, apenas a boiar na melancolia. A intenção é «tudo e mais alguma coisa» na mais libertária lógica associativa. Logo veremos. O meu dinamismo é, tantas vezes, aparente. É certo que me sinto bem na interacção e na concretização, mas invisto valor particular na ideia e na palavra projecto para a aplicar sem mais nem menos. E dou-me muito bem fazendo rigorosamente nada. Aliás, anseio por isso. Talvez me deixe levar em demasia pelas ondas da vida, que teimo em ver como oportunidades. A agenda enche-se logo com compromissos sempre em falta, trabalhos dos quais acabo por retirar pouco prazer ou realização. Tenho momentos em que anseio por um horizonte para perseguir até ao fim, assim a modos como um destino. Isto cansa-me sobremaneira, surgindo-me como uma preguiça de decidir. E noutras alturas percebo a grande inutilidade de tudo. Diz este meu amigo, aliás muito pouco social cuja vida vista de fora me parece acertada e em bom caminho, ao contrário da minha que é muito vacilante e dispersa, que tem «um mood altamente flutuante ao ritmo não sei de quê e que não percebeu se são as depressões que trazem realizações ou se são as realizações que me deprimem.» Depressão é uma palavra clínica, que está demasiado presente nos nosso vocabulários. Os trabalhos de viver não se resolvem no médico e o mood depende a cada instante da música que se ouve.

sábado, junho 12

Mundos na música

Sei pouco do futuro, mas sou capaz de adivinhar por onde andarei de 29 a 31 de Julho. Será em Sines, no magnífico Festival de Músicas do Mundo. Este ano, entre muitas várias razões, há a elegância comovente de Rokia Traoré e o absoluto desconcerto de Tom Zé. Com estes dois, do Mali e do Brasil e de sítio nenhum, floresce a poesia do desejo, o calor da reflexão, o som apesar de todas as geografias, a palavra que perturba, puro encantamento. Vibro por antecipação.

sexta-feira, junho 11

Palcos do tempo

Há dias que tento sem sucesso escrever um texto-encomenda em torno do tempo. A passagem destas horas tem sido experiência sensacionista rodeada de mortes, de miséria moral, de notícias tristes de um país que perdeu a ideia a velha ideia de carácter. Digo isto não tanto pela hipocrisia política, pelo nacionalismo serôdio, mas por experiências próximas, quase íntimas. Estando nisto, explode-me A Bomba com Woyzech e o seu drama fragmentado, também ele feito de miséria e morte, de esforço e grito. Os outros, segundo Georg Büchner, são um inferno portátil que nos remetem a cada momento para o pior de nós. Basta-lhes estar, nem precisam de ser. São eles, cada um dos outros, que rasgarão a golpes o destino daquele que nasce condenado. Apetece-me muito o teatro, feito de palavra e corpo, com uma verdade que não encontro há muito no palco. Aliás, desde que sinto regressar Deus como interrogação aos meus dias, penso muito em teatro. E o que tem isto a ver com o tempo?

quinta-feira, junho 10

Da casa

Será que sou só eu que vejo a veia erótica dos veios do mármore?

A minha gata...

...mal adivinha o calor espalha-se pelo chão como um tapete negro e lustroso. É de lá que nos lança os seus amarelos de ternura fulminante.

quarta-feira, junho 9

Carta aberta ao passaporte

Não foste o primeiro, nem serás o último. São meia dúzia de folhas e carimbos, mais um visa e uma foto. A fotografia a la minute tem aquela qualidade surpreendente de nos apanhar sempre em momento irreconhecível. No caso, ao acordar, tentando a normalidade. O visa era para o país das torres gémeas, os carimbos cheiram a sul e a oriente. Tu, em concreto, fizeste-me companhia sempre em bons momentos. Foste chave de acesso, com essa dignidade bordeaux, a passagens quase exóticas. Aquele que te substitui irá para longe, trará outros relatos. Não me iludo pois nada conservas, a não ser restos de tinta, suor e as impressões dos controladores. Não guardas as histórias. Repousas agora no arquivo triste de um governo civil. Por pecadilho de juventude, quando andavas pelo verde, esqueço que és ferramenta de controlo quase medieval (na palavra e na cor), dizes aos polícias por onde ando, que idade tenho, além da pureza do meu cadastro, das minhas intenções. Dizias da minha identidade, cuidando que ela se conserva em fotos e datas e nomes.

terça-feira, junho 8

A minha gata...

...enche-nos de pêlo. Acha estranho que, sendo da mesma família, tenhamos tão poucos.

TV UP

Nem sempre assisto, mas desconfio que há um outro motivo para ver esse ser estranho dito A:2, isto para além da série Anjos na América. O programa chama-se Pop Up, obedece aos caprichos da Cláudia Marques Santos e do Rui de Brito, além de vir sendo encantando pelos offs da Inês Meneses e pela imagem do Pedro Macedo. A escolha das peças obedece ao critério das ideias-fashion tentando pintar Lisboa e talvez o Porto como cidades cosmopolitas (quando quase tudo se passa no Porto e aqui quase nada), mas tem momentos de televisão únicos na sensaboria nacional. Acabo de ver uma “recensão” ao próximo Jim Jarmush (Coffee & Cigarrettes) com os críticos Miguel Somsen e Pedro Marta Santos a glosarem o tema à mesa do Estádio, em pleno Bairro Alto, a preto e branco, com sentido de humor e ideias. E fazem tanta falta as ideias na televisão que merecem o nosso olhar.

Da casa 02

O pícaro da maçã, se abandonado, solta um perfume de férias grandes.

Nuvens que não passam

Não sei de boletim meteorológico que diga de onde vem e para onde vai este anti-ciclone que me empurra com nuvens densas para sítios de lugar nenhum morada das miragens de torpor e indiferença cujas mínimas abertas deixam entrar as trovoadas que desorientam as bússolas de iluminar descaminhos. Não sei, daqui em diante não sei. Se olho para trás são tantas as horas assim que me assusto com o torvelinho de desesperos esvoaçantes. De dia são os carros que não passam sem apitar e à noite são as vozes do álcool que não passam sem ficar. Este tempo só passa se o Chet Baker cantar. Um trompete canta azul?

Da casa 01

Não gosto que a fruta me apodreça assim, às escondidas. Acho que as tangerinas ficaram com ciúmes das cerejas que chegaram do Fundão.

Descrição 05

Apesar do verde vítreo deve ser preservada da luz e do calor. Quando fresca, aquele verde ganha uma tez mate, que anuncia na pele o que acontecerá na boca, lábios, língua e papilas. A abertura fácil anuncia com um sopro aquilo que a pele antecipou. Sem tampa, ainda ela esverdeada, sobram pequenos degraus em espiral que dão expressivo sinal de incompletude. É por isso que não deve ser usado copo para se beber tal transparência. Verte-se em goles decididos, mas não se engole logo. Pode deixar-se ou não tocar os lábios. Nalguns casos uma gota caindo sobre o queixo fará delícias para a filosofia de vida. O carácter gasocarbónico deve explodir em qualquer caso por sobre a língua. Este produto de Portugal é recolhido a norte, lugar que é também paragem de comboio. Nenhuma água possui esta personalidade de rocha. Muito menos o nome. Há nas Pedras Salgadas uma harmonia na quantidade de gás, no sabor levemente ácido, uma vontade de montanha em busca de oceano, de rua ansiando por esplanada, de dia a pedir o seu fim na beira do rio. É algo que não vem na composição química, algo mais do que a pureza bacteriológica verificada por análises periódicas. É uma ideia natural.

segunda-feira, junho 7

Lombada

O Sol comeu a cor desta lombada. Estou em crer que a escolheu com um propósito. O Sol pintou com um amarelo diferente da capa a estreita lombada que oculta um Cícero discorrendo em «Da Velhice»(Cotovia): «Não estou arrependido de ter vivido já que vivi de modo a não ter nascido em vão.» Gostava de poder dizê-lo em voz alta, antes que o Sol me coma.

Feira do Livro

Passei uma tarde rodeado de amigos. Azul que corre ao fundo, azul lá mais para o alto. Entre rio e céu, há o verde e as páginas, essas plantas carnívoras. Passei a tarde à mesa nessa estranha tarefa de autografar, na companhia de quatro amigos ilustradores, a Maria João Worm, o André Letria, o Alain Corbel e o Miguel Rocha, que fizeram comigo os primeiros quatro títulos da colecção «Olho Vivo», que a Afrontamento edita para crianças de todas as idades. O Miguel Rocha, que veio do seu Alentejo para a função, trouxe-me uma bola feita de cores, tudo o que sobrou da nossa «Viagem no Branco». O Alain fartou-se de tirar fotografias, a Maria João mostrou originais, o André passeou a sua preocupação. Estes eram os amigos que estavam, que outros foram passando só ou chegando, como o Miguel, que desenha na Pública, as mui filosóficas «Histórias de Amor». Trouxe com ele «A árvore das folhas que doem», texto e desenho seu, na Campo das Letras. Gostei deste tráfico. A Manuela Rêgo, por exemplo, deu-me o catálogo da sua exposição Desportos & Letras, que reside agora na Biblioteca Nacional. Gente com livros, só com eles, com sede, à procura de palavras. Gente, tanta gente à espera de outras pessoas, outros à procura de mais livros, e aqueles que procuram gente nos livros e matéria de livros nas pessoas. Não sei, será isto uma Feira? Ia desanimado, volto com um pouco mais de ânimo.

sábado, junho 5

Achado, assim perdido

Deve ter um funcionamento semelhante ao da electricidade. No grande interruptor da língua, alguém ligou a palavrinha. A princípio era sussurro quase longínquo. Ouvíamos dizer, eram estranhos que praticavam a perguntinha. Mas a corrente foi passando e ouvia-se perigosamente em bocas vizinhas. De súbito, estava próxima, por entre os lábios de uma amiga. Em nossa própria casa, na família. O cerco foi-se fechando até que o próprio autor destas linhas, apardalado, se apanhou a pontuar o fim de uma frase com a famigerada interrogação: «Achas?» Deve funcionar como a electricidade, mas em mais irritante. O tom sobe entre o A primordial e o S apocalíptico, lançando o desafio em tom de desprezo à cara do interlocutor. Também o próprio pode replicar em eco, repetindo o pingue-pongue até ao infinito. Ainda me arrepio quando a oiço, mas esperemos que o sofrimento agudo que provoca não dure muito. Um destes dias regressará ao limbo onde se perdem os sentidos, será apenas mais um som indistinto com que enchemos as nossas conversas. Pelo menos é o que eu acho, assim perdido.

quinta-feira, junho 3

Alarme falso

Riscam a cidade cuspindo vermelhos e azuis, os cometas brancos marcados a grossas cruzes encarnadas. Toda a gente se habituou a pensar que levam a vida que resta em direcção aos hospitais, à salvação possível, devedora de exames e concertos de via oral ou incisões profundas, de cirurgia urgente ou administração intravenosa. Cada um se engana se supor que são anjos. É nos Anjos que a conspiração se revela transparente: são sete e não podiam ser menos os hospitais que quietos e inquietos por ali acolhem os cometas brancos cuspindo vermelhos e marcados a encarnado. Sete e não podiam ser menos, entre infância e foro mental, com urgências ou ortopédicos, de S. José a Santa Marta. Não conto o das bonecas. A passagem dos minutos é desconcertada pelo som riscado dos cometas. Ninguém nota. Estão postos no sossego de pensar que são anjos de branco a salvar as réstias de vida possível. Não é bem assim. Quem se importa? Durante o dia criam manchas nocturnas, paragens súbitas, hesitações como fotografias no estrebuchar da cidade. E cada crepúsculo anuncia uma grande noite de fado. No interior dos carros luminosos e bojudos vão fadistas apressados, vão de negro e cantando um dos sete destinos. Passam tomados pela pressa, arredando trânsitos e despertando pássaros noctívagos, atirando de olhos fechados gritos de soro e respirações assistidas. São de vidro como manhãs de sol de inverno as pequenas narrativas que se desprendem como fruta madura. Oiçam as vozes tombadas pelo chão ou ainda volúveis na atmosfera: nem sempre são facas, nem alguidares, nem sempre são marinheiros, nem amores esmagados. São atiradas pelas sirenes e cantam rimas triviais que as batas brancas recolhem para se não perderem, preciosas. Alguém as há-de transformar mais tarde, consoante o ritmo e o tema, em xailes negros ou brincos dourados. Outra que passa. Desafinada, parece-me.

A minha gata...

...hoje está Satie: ninguém se aproxime a não ser pela melancolia.

Letra

O brasileiro tem um sopro. Onisciente não é o mesmo que omnisciente, e falamos aqui de deus. O brasileiro, deus me perdoe, fala perdendo letra. Ainda que escreva, perde letra. Embora sem nunca perder o sentido. E qual é? Pra cima! Bute nessa.

A minha gata...

...mesmo quando boceja revela o carácter de uma predadora.

quarta-feira, junho 2

Chocolate

Sugere uma amiga que desgosto da felicidade por ter medo dos sentimentos. Gosto muito destas discussões, se possível com caracóis e cerveja. A minha amiga, que está grávida e, portanto, de bem com a vida, gosta de usar os estereótipos, mas ela sabe mais do que isso, como todas as mulheres (será um estereótipo?). As mulheres aprenderam há muito a pensar com o corpo, levam por isso algum avanço. Só que a felicidade é miserável, depende afinal de tão pouco (a Primavera, um olhar, uma flor), e dura um fósforo. A felicidade é a discussão que passa ao lado, não nos diz nada sobre a vida, não nos ensina nada, é uma espécie de droga que deram de borla há uns séculos para a vender agora, a torto a direito. Dito isto, tenho amigas lindas de morrer, gosto de beijos do tamanho do mundo, adoro receber flores na Primavera e de beijinhos no dói-dói. Também gosto de má língua e de trufas de chocolate.

terça-feira, junho 1

Uma capa

Não falarei do conteúdo, do miolo. Uso o belo título de Rodrigues Miguéis, «A Amargura dos Contrastes», para falar desta capa em nome de todas as outras que Vasco Rosa resolveu dar às recolhas com que O Independente em celebrando um qualquer aniversário. Na sobrecapa, a lombada e a contra-capa vão de amarelo, interrompido apenas pelo branco do rosto. E de rostos se trata, pois o lugar central é ocupado pela arte de André Carrilho, ele que apanha como ninguém a essência de uma personagem, de um autor, de uma pessoa. Carrilho vem no interior dos corpos. Migués fuma, olha a três quartos, através de grandes óculos, para um qualquer horizonte, cabelos a raiar de branco, como branca é a camisa sobre o fundo. Cada letra está no sítio certo, ao centro a dizer o brandamente o essencial, por sobre a figura solitária. Miguéis foi um pensador solitário, vestiu elegâncias de branco e olhou para além da amargura. É raro encontrar assim tudo, em capa dura, neste equilíbrio de contrastes: letra, desenho e espaço.

Descrição 04

Uma folha de papel, mas poderia ser de aço desde que não brilhasse. Singela. Arrancada ao bloco, assim o denuncia a irregularidade esburacada do topo. Um traço a lápis, à régua, muito próximo da margem diz-me que o papel não começa onde parece, não começa no início do papel, mas onde o artista quer. O artista assina ST, singelamente. O traço é uma figura de traço que desenha, primeiro, um corpo, simples como letra, segurando um frasco de tinta, com a mão esquerda. Na direita tem uma caneta de aparo, que vem riscando. O frasco não tem tampa. Reparo no nervoso do traço: possui a segurança da ideia e o sabor da espontaneidade. A figura está no centro de tudo, perdida nas suas duas dimensões, fundo e corpo para sempre unidos apesar do contorno. O ser que desenha está incompleto. A sua identidade esconde-se por detrás do gesto: o rabisco arabesco que parece assinatura faz as vezes de cabeça (perdida) e rosto (desfeito). Steinberg desenhou, pelo menos desde os longínquos anos 40, inúmeras variações do tema: alguém que se risca, alguém que se desenha, alguém que se assina. Às vezes, o frasco da tinta dizia “INK”.


Estas descrições migraram de outro lugar: http://muro.weblog.com.pt/

Nada para começar

Não sou operário, nem capitalista. Tenho uma chave inglesa e um charuto. Já usei aquela, mas esqueci-me. Fumei o outro, mas não se repetirá. Tenho medos para todas as ocasiões e livros para gastar um destes dias. E inércia, uma enorme inércia que carrego montanha acima, vida abaixo, sempre a direito e em desespero. Não passa nada. Não acontece nada. Vivo uma espécie de evolução sem revolução, uma involução na continuidade. Irrita-me muito não ter sorte, mas também não posso dizer que tenha azar. Vivo apenas banalidades de base e humilhações diárias. Não sou assaltante nem banqueiro. Detesto a ideia de felicidade, e gosto da de sabedoria. Revolto-me, sem que grite ou chore. Não tenho nada. Agora talvez tenha um diário.