sexta-feira, julho 30

Reflectório

Foi a Cristina Sampaio que me chamou a atenção para o passo que a Anabela Natário deu para além das palavras. Depois das reportagens para o jornal Público sobre a movediça cidade de Lisboa, desatou a compor um reflectório  a partir da subtil marca da cidade nas suas coisas. O resultado tem tanto de fascinante como de assustador. Nada é apenas o que parece. Os objectos que habitam as paisagens urbanas são espelhos temíveis que nos empurram para realidades de feroz lirismo. É bom que ainda haja gente atenta aos fantasmas que passeiam entre nós e o mundo. Como gota rebelde de suor.

quinta-feira, julho 29

Chumy e os epitáfios

Por falar em países vivos, trouxe da caliente Madrid o livro-catálogo dedicado pelo atentíssimo amigo Felipe Hernández Cava a Chumy Chúmez: el descreído imaginario. Chumy recebeu, no ano passado, a morte que andava a desenhar há tantíssimos anos. Essa é a primeira impressão a retirar do seu trabalho brutal, espalhado por algumas das melhores páginas vizinhas (La Codorniz, Hermano Lobo, ABC, Diario 16, etc.): a morte anda connosco desde que nascemos. Chumy Chúmez, que colocava um sol pequenino nos seus cartoons que às vezes parecia um buraco de bala, diz-nos que devemos dialogar o mais possível com essa companheira. Ele fê-lo, rindo do modo como vestia ou se comportava, daquele ar escanzelado com que nos aparece. A outra lição filosófica está na estranha relação que o desenhador teve com o seu país feito de países. Ao contrário do que diz personagem sua, que «os humoristas sabem rir-se das desgraças alheias», os humoristas verdadeiros fazem suas as desgraças dos outros. Chumy Chúmez achava que, mais do que piadas, o seu trabalho era fazer epitáfios.

Valerá a pena aplicar estes ensinamentos ao meu tristonho país, apesar de estar a léguas do humorismo (o meu sentido de humor é mais na base do sinto muito...)?


Capa minha amiga

Ontem encontrei um «autor do nosso tempo»: a primeira tradução de Raymond Queneau (Manuel Pedro, 1961). Trata-se de Pierrot Meu Amigo, pela Editorial Minerva. As páginas estão virgens (o gozo que me vai dar soltá-las, como asas). Queneau é daqueles autores (não serão todos?) que devem ser lidos no original, embora uma boa tradução possa ser um jogo. Comprei este porque a capa é do Sebastião Rodrigues. Abençoadas mãos que tão belos rostos deram a tantos livros! Sarah, no meu país, os livros começam nas capas.
(É grande a tentação, mas prometi a mim mesmo que só coloco imagens no regresso de férias, lá para Setembro. Resistirei?)

A minha gata...

...caça murmurando. As pombas respondem-lhe com indiferença e sobranceria. De olhos fechados, a gata sonha com asas sabendo que se as tivesse deixava de caçar.

Correio do Brasil

A imprensa nacional, que anda triste e sem alma, ficou mais pobre. Circula a partir de hoje a última edição do Correio do Brasil, espécie de transatlântico a unir dois povos que tanto se estimam quanto se ignoram que durou 24 viagens. A primeira página é negra e sussurra apenas a palavra fim. Mas tinha que lá vir um asterisco prometendo que o fim é tão-só da primeira parte. Conhecendo como conheço a directora, a Paula Ribeiro, não tenho a mínima dúvida que é verdade. Lamenta-se a cegueira destas empresas que sujam páginas na vez das imprimir. E espera-se ansioso o regresso, que nós bem precisamos de notícias sobre países vivos.

segunda-feira, julho 26

Mundo de músicas

Aí está o fim de Julho e com ele chegam, ali a Sines, a elegância comovente de Rokia Traoré e o absoluto desconcerto de Tom Zé. Com estes dois, do Mali e do Brasil e de sítio nenhum, floresce a poesia do desejo, o calor da reflexão, o som apesar de todas as geografias, a palavra que perturba, puro encantamento.

sábado, julho 24

In Memoriam: CARLOS PAREDES (1925-2004)

Este ano é um cemitério, mas recuso-me a acreditar na morte. É uma tentação, sublime, até. Mas enquanto os sons tiverem esta força de cidade, enquanto soar a suor, enquanto este génio souber ser simplicidade e resguardo íntimo, enquanto isso acontecer ergue-se uma parede oca de madeira que tudo aguentará. As cordas servirão para subir a vida a punho com unhas e assim o esforço soar melodia, triste, sentida. Há vida apesar da morte.

quarta-feira, julho 21

Recorte #01


«4 blocos para viajar aos poetas »
 
Por
PEDRO MOURA
Público.pt
Sábado, 13 de Junho de 2004
 
 
Num pequeno "guia orientador de leitura" intitulado Viajar nos Livros, editado pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas no ano de 2003, a autora Alice Vieira apresenta uma escolha de alguns livros indicados à leitura dos "mais jovens" que falem de viagens, umas mais inventivas que as outras ou que sirvam para viajar. Apesar da própria autora se precaver com a advertência de que qualquer selecção é "subjectiva", não pode essa servir de obstáculo a que se teçam críticas à mesma. E ainda que qualquer selecção possa ser discutível, a ausência de Alice (ou diria das Alices?) é um gritante silêncio. Tentativa de evitar a homonímia? Os novos livros escritos por João Paulo Cotrim também não se encontram nesta lista. Quero crer que se deve ao facto de serem todos demasiado tardios para terem sido incluídos na escolha - os dois primeiros, História de Um Segredo, com André Letria, e A Cor Instável, com Alain Corbel, são de Fevereiro de 2003. Mas algo me impele para um modo de ver que o critério da viagem pode ser sempre alargado... A discussão poderia começar com a afirmação de A. Vieira em que, "Infelizmente a literatura portuguesa não é muito rica em livros de viagens." Como? É verdade que poderão existir sub-categorias deste género literário mais representado que outros, essa afirmação não é verdadeira, tendo em conta o enorme e rico espólio desse mesmo género, aliás sobejamente estudado entre nós. A redução não deixou de ser feita.
Já na seguinte publicação do mesmo instituto, Portuguese Children's Books, em inglês para divulgação internacional (e a propósito de candidaturas portuguesas ao Hans Christian Andersen Award 2004), com uma selecção assinada em conjunto, mas com o indelével cunho de Luísa Ducla Soares, já surge A Cor Instável.
Estes quatro livros - para além dos já citados, há O Homem Bestial, com Maria João Worm, e Viagem no Branco, com Miguel Rocha - são apenas os primeiros editados na colecção Olho Vivo da Afrontamento, já que Cotrim promete ainda ofertar-nos mais uns quantos volumes, "para acentuar a ideia de colecção", diz o próprio. Canção da Rocha, da Onda e da Nuvem com Tiago Manuel e A Máquina das Asneiras com Pedro Burgos são para já promessas a cumprir, mas outros episódios que desdobrarão este projecto - de mais de cinco anos na calha - também se esperarão.
Será uma terrível redução dizer que estes são livros infantis; mas também não é daqueles casos em que se pode dizer que "tanto gostam os miúdos como os graúdos". Há aqui uma vontade de inaugurar uma porta relativamente nova. Em Portugal, poder-se-ão apontar variadíssimos registos de literatura versada para públicos mais jovens, os que começaram a ler faz pouco, os que querem aprender a ler mais, os que ouvem histórias lidas pelos pais. E existe uma grande diversidade e níveis de atenção. A publicidade continua, porém, a ser feita sobretudo aos ineptos e inanes livros que têm uma "lição", uma "moral" ou a partir do qual se poderá aprender a fazer qualquer coisa de "útil". Livros que pretendem sempre ensinar algo de imediatamente aplicável na mais chã das realidades e da vida das crianças.
Não é este o presente caso. A utilidade máxima destas quatro (e mais, como vimos) aventuras autoradas por João Paulo Cotrim e os desenhadores respectivos é a de viajar para dentro. Não quero com estas generalizações sobre o trabalho gráfico menosprezar, de forma alguma, o trabalho de cada um dos desenhadores, já que as parcerias foram sentidas e não ocasionais ou circunstanciais, sendo cada uma das pequenas narrativas especialmente bem associada à expressão gráfica típica de cada desenhador. O ponto de partida foi sempre uma relação pessoal de Cotrim com o desenhador em questão, e não se trata da prioridade de um criador sobre a de um outro, mas uma verdadeira experimentação de conversa criativa a dois.
Porém, se existe algum ponto em comum nos quatro volumes, é o movimento: um movimento contínuo, em espiral, cada curva e virar da página mais rico que o anterior, aparentemente uma repetição de uma ideia, mas já mudada no seu sabor. Move-se um segredo, move-se a cor, move-se a comparação.
Duas das histórias, nomeadamente A Cor Instável e Viagem no Branco, têm dois teoremas que se anulariam numa mesma plataforma: nomeadamente de que "nada é a preto e branco" e consequentemente "cada um pode ser arco-íris" e a de que "É à noite que deixa de haver coisas porque não há luar. No branco há imensa coisa!" Mas, para além do facto de que cada livro vale por si, e que os autores são livres de vestirem tanto a pele do lobo como a da ovelha, a verdade é que o contador de histórias aqui está próximo da fórmula introdutória clássica dos contos ciganos: "Era e não era." Porque o mundo é enorme e há espaço para tudo e para todos os seus contrários. O Olho Vivo de todos estes autores vai encantando-os a todos...
           
 
História de um segredo, A cor instável, O homem bestial, Viagem no branco.
AUTORES João Paulo Cotrim (textos) e, respectivamente, André Letria, Alain Corbel, Maria João Worm, Miguel Rocha (arte)
EDITOR Afrontamento
35, 33, 31, 29 págs., 7.50 Euros

quinta-feira, julho 15

Mais pobres

As minhas recentes viagens pela blogosfera perderam dois pontos de apoio. Os companheiros calaram-se e a formiga resolveu parar. Até a Ma-Shamba se deixou de cultivar Os dias ficam mais solitários, saberei menos das coisas.

terça-feira, julho 13

Da casa

De tanto por elas passarem, sei que mudam as estações pelo ranger das portas. Não coincide com equinócios e outras medições do trajecto da Terra ou do Sol, mas as dobradiças assinalam o tempo que escorre com gemidos e murmúrios e rangidos e mais lamentos. Explico-lhes em silêncio que nada mais se pode além de rodar em frente. Não me levam a sério.

Amizade quente

Só quem ignora o Alentejo desconhece esta sabedoria. Este calor que se instala entre nós e as coisas é o da amizade. Neste estado apolítico e amoral, todos perdem a inclinação para o Mal. A energia que nos resta, em roda de amigos silenciosos, deve ser aplicada no braço para que este, em esforço tremendo, alcance a “mine”. A única exclamação permitida é o “esssstá” do céu da boca a saudar o céu do malte contente por estar vivo em boa companhia. Escusado será dizer que tenho saudades.

segunda-feira, julho 12

A minha gata...

... há duas semanas que insiste em fechar-se no armário da roupa arranhando as gravatas. Lambe-se depois e dorme. Estou arrependido por ter-lhe falado da crise.

Rapazes de água

A pele do tambor dos Waterboys tinha um espírito. Por vezes sou assaltado pelo trompete que me atira por sobre a falésia junto ao mar. Soa de modo humildemente imponente e atira-me para um Alentejo interior, meio esquecido que me sabe a velho. Esta lua aluada atira-me para fora de mim, que é o melhor lugar para se estar, aí onde a planície se impõe com os sobreiros e as cigarras. As cordas dos Waterboys desfazem quaisquer inimigos, sejam eles os próximos. O pior dos dias de hoje continua a ser a morte dos lados B. Eles eram a prova de que o lado B era uma filosofia de vida.

In Memoriam: MARIA DE LOURDES PINTASILGO (1930-2004)

Nome de pássaro dá nisto: voo de surpresa, como aconteceu teres sido tantas vezes. Se algum dia a política foi lugar possível dos impossíveis, se a Igreja foi próxima, se a mão tocou o coração e a generosidade partiu do pensamento, foi contigo. O futuro não será sem ti.

Escapadela

Salto de um quadro para dentro de um filme. Explico: estive em Madrid e enchi-me de belas imagens. Seria longa como uma avenida a lista. Escolho «O Homem Branco», do expressionista Feininger. Um magro de cachimbo que parece atravessar um vulto negro, em segundo plano. Ao fundo, um edifício, alto e feito de vermelhos. A cidade é um homem elegante de gravata e cachimbo, mas também um vulto negro entre o azul e o vermelho.
O filme faz-se ao pé do meu regresso a casa. No largo, alguém continua a simular vezes sem conta o momento seguinte de um acidente violento. O homem careca desce a correr para o corpo que se projectou do carro. Grita-lhe o nome. Quase acredito que o choque brutal acabou de acontecer, algures entre o azul e o vermelho. Vejo, na varanda, um vulto branco expressionista.

Desgosto

Para este nosso último primeiro, a palavra elegância está sempre à língua de semear. A elegância é, ao que parece, uma qualidade. Segundo livro grande das palavras o nosso último primeiro quer dizer graça, gentileza, distinção de maneiras, gosto apurado no trajar, delicadeza de expressão, harmonia. Gravata azul e cabelo cortado não o salva no trajar. Repete demasiados chavões com polegar atirado para trás para nele detectar delicadeza de expressão. Distinção de maneiras talvez lhe encontrem as damas com quem gasta as noites. Também não lhe encontro graça, menos ainda quando ri. Gentileza há-de ser a fingida pelo trato polido da política: soa a oco, como estuque. Não lhe encontro, pois, harmonia que justifique a elegância. Em desarmonia, no livro grande das palavras, mora em página perto o significado de eleição.

domingo, julho 11

quarta-feira, julho 7

Desastre

Como álcool na ferida: a Arrábida está a arder.

Palavras

Só encontro uma virtude nesta crise, embora confirme o que há muito sabíamos: um político diz qualquer coisa e o seu contrário, com horas de diferença. Em nome de uma ideia? Não. Para manter o poder, por minúsculo que seja. Até diz, olhos nos olhos, do seu desapego ao dito poder em nome de causas. As palavras, de tanto tombarem, um dia partem-se.

domingo, julho 4

Sol e Sombra

Por estes dias, o Presidente Sampaio, que balança entre solução de crise e euforia de vitória, devia gastar algum do seu tempo lendo o romance negro de Jacinto Lucas Pires, Do sol (Livros Cotovia, 2004). Boa parte das respostas estão no diagnóstico, e, apesar de o esquecermos, a literatura é uma radiografia. Este país não está luminoso, embora nunca o tenha estado excepto em cartazes de propaganda. Se lidas em contra-luz, estas páginas indicam, entre outros cancros, distúrbios mentais na esfera do poder. É um livro que merece ser discutido. Fica prometido.

Da casa

O escritório atingiu o limite. A minha ginástica diária é feita de perigos: o pulo elástico, o emagrecimento súbito, o alongamento excessivo, a elevação sem limite. Nem sempre os movimentos correm bem. Mais fracassos, pois há considerava perdida a ideia burguesa de confinar os livros e os papéis a uma assoalhada, que tal seria se chão se visse. Para multiplicar as paisagens e o entendimento dos lugares, os livros precisam de se instalar em nós. Aliás, a desarrumação tem o charme desfeito de um monumento orgânico, um altar instável onde sacrificar a cada instante a eficácia.

sábado, julho 3

Sophia

Página após página descobriste a raiz do teu nome mergulhada em nuvens de mármore e brisa. Guardo a palavra, por ora justa e grega.

A minha gata...

...sabe sonhar longas viagens sobre as roupas gastas pelo dia anterior.

Meia idade para a frente

Fiz as contas: tenho uma dezena de projectos e nenhuma vontade para amanhã.

Meia idade para trás

Visto daqui não há nada. E agora, que passo dar?

Very Important News #03

Não se deve mostrar um escritor neo-realista nu, de boina e livro. Alves Redol, na visão de Lagoa Henriques, em Vila Franca está assim e sentado, a invocar as rochas e o mar da Nazaré. Para a CDU local, é “de um desprezo total por um escritor vila-franquense” pois a boina “nem sequer é a tradicional catalã que Alves Redol usava”. O PS local também não consegue ver o escritor “naquela figura”. A presidente da Câmara, Maria da Luz Rosinha, diz que a cidade se orgulha da obra: “A liberdade de criação não se discute”.

sexta-feira, julho 2

In Memoriam

Morreu Brando e lembro-me de Corto. Morreu Sophia e guardo a palavra. Por ora, mar.

quinta-feira, julho 1

Very Important News #02

O artista e fotógrafo norte-americano, Tom Forsythe ganhou o processo que a Mattel lhe tinha movido por infracções ao copyright, tendo o juiz sido bastante claro: qualquer artista pode gozar com a Barbie. Forsythe tinha feito 78 fotos provocadoras da boneca. A decisão é justa. Um mito da beleza não pode estar escapar assim, sem mais nem menos, ao olhar dos artistas.

Very Important News #01

O Guiness Book of Records, que conserva uma parte feroz da memória do mundo, tem uma nova categoria: “mensagens de telemóvel”. Kimberley Yeo, de Singapura, demorou 43, 24 segundos a escrever no teu telemóvel: “As piranhas de dentes laminados do género Serraslamus e Pygocentrus são os peixes de água fria mais ferozes do mundo, mas, na verdade, raramente atacam o homem.”

Atmosférico

Algum efeito há-de ter tido o grito síncrono e continuado de milhões. Ontem, é claro.