sábado, setembro 17

Mecânica dos Fluidos

A simplicidade reconhece-se, mas custa a explicar. Bunny and Bear são personagens que nos acompanham desde a fundação do mundo. Talvez estivessem camufladas ou talvez estivéssemos nós distraídos, metidos connosco sem ver com olhos de ver. Agora que Manuel San Payo as apontou, à força de dedos e pincéis, são-nos inseparáveis: como o ar que se respira, o chão que se pisa, a luz que nos enche, a paisagem que se sorve. Vejam bem: Bear nasceu de uma mancha, cor sobre cor, corpo na cor: vermelho. E logo o branco a comentou: Bunny. Estavam mesmo ali, está visto. Não mais deixaram de se brincar. Há uma série exemplar: se a tela se apresenta branca, há que tingi-la. O urso vira pintor, mas de paredes. O que era visível logo se esconde quase desaparecendo: sobram apenas olhos, uns olhos que nos fitam em desespero. Eis o trabalho do pintor: mudar a superfície das coisas até desaparecer nelas. E devolver em espelho a angústia da existência. Mas que anti-depressiva é a angústia de Bunny and Bear! Seres portáteis, diletantes de andar pela rua, foram recolhendo detalhes, sublinhados com uma legenda, um título. Por vezes citam pinturas e pintores. Noutras abusam do tema do dia. Amplificam gestos. Provocam. Trocam de pele e de papéis. Surgem do nada e no meio de nós. Interpretam perante os nossos olhos um pequeno teatro das relações (pequeno e grande, textura e superfície, longe e perto, ternura e paixão, espaço e pormenor, momento e movimento). Levantam questões acerca da cultura popular, da cultura visual, do gosto e do desgosto, dos modos como vemos e damos a ver. E conversamos ou silenciamos cada um desses assuntos. Se nasceram do percurso quotidiano e diarístico de Manuel San Payo, pouco demorou a pularem nas redes, transfigurando-se em criaturas sociais, figuras públicas. Para cada situação, por cada peripécia, os rostos e respectivas expressões oferecem-nos conforto e explicação. Os nossos dias são doravante animais. E estão por todo o lado. Manuel San Payo descobriu um mecanismo, bem oleado pela sua característica ironia, que se tornou a matéria dos dias: Bunny and Bear explicam-nos a política, nacional e global, resolvem-nos os afectos, fazem-nos rir, mas tudo sem querer. Nada os ocupa nem preocupa: nos mais variados formatos e suportes existem apenas. Perturbador de tão simples.