Este texto começa mal, começa sem a nossa intervenção, como melodia brasileira zarpando, antes do sol nascer, antes do guionista chegar para chupar picolé, nota que ele, o texto, insiste em «gravar como» (ai que saudade, deixa para lá), numa ânsia de arquivista pergunta a data e o modelo, propondo para início de conversa datas e um programa, obrigando-me a lhe explicar que viemos de longe, que este texto se começou escrevendo em bairro que era um quarto, quando o agoiro se fazia contra todas as tropas, meu caro exaustor de consciência. Nota como perdemos: os militares estão por todo o lado, nos discurso da esquerda, nos cromos que elegemos, nos modos como nos relacionamos, em cada sovaco se acoita um militar de baixa patente e alta ambição.
Senta-te, meu, amachuca a prosa e bebe comigo uma água para me amarrar, deixa que te diga que venho com a incumbência de te abraçar antes da queda (um gin, agora, por favor), chego do lado de baixo de equador, dessa rua estreita onde as putas vendem conceitos na vez de cona, toca aqui comigo este tambor de chocolate com jindungo, discute o picante de sabotar todas as polícias que farejam o gosto, quem é você?, adivinha se gosto de você, se senta e se apresenta poeta e engenheiro das carcaças que são hoje o chão que pisamos, com queijo e fiambre sem matar fome ou sede. Começámos a nascer juntos , quando o verbo era reflexivo, quando as causas eram apenas isso, mesa onde nos sentávamos como quem ergue e constrói discussões, conversas, uma mão, a desdita e tantos olhares, modos de vencer o sono a tempo de chegar à lua ou vencer o sandokan, coisa de cuspir afinando a voz e apurando penteado.
Reparo agora que choro nisto e para abrir o fim do papel sobre o qual montaste casa, fico triste por causa das folhas, da máquina de escrever que os nossos irmãos detectives (poetas que disparam interpretações, as mais profundas) trocaram por álcool destilado perto de casa (causa é uma casa, já pernoitei na tua causa, gravar como). Sei que gostas na narrativa, de ardis e da lei com ardis para te delatar e contravenções, bandido infeliz, mas o relâmpago da poesia vem intrometer-se como política cultural nas virilhas de um criador: coça mas não desce, arde sem que suba.
Desculpa tu, meu irmão, o que costumamos partilhar é riso, e com ele percorremos as nossas cidades, a que são tantas vezes a mesma: amigos vivem sempre nos mesmos mapa, que a casa é um papel onde desenho um modo de abrir, de entrar, de sentar de dormir e rir. És daí e sou daqui, norte e talvez sul, mas adoro o modo como só nós e a amizade dobramos mapas e encolhemos distâncias, puxa assunto: vejo um rio à procura de onde desaguar para que alague um universo agora feito de quadradinhos e onomatopeias, mas pode ser teatro ou jazz. Deixa lá, disto nem todos os rios percebem, que as cidades servem para explicar aos transeuntes onde está a luz e o negrume, cada um em seu verso da folha que o detective (loura de nylon e sangue a esvair-se em refrão cantado no palco do Rivoli) rasga fingindo que não lê. Tu és dos que lês, com um olhar que é de adeus bem-vindo, o gesto mais difícil de compor neste bailado dos vencidos (venha um uísque, que está na hora).
A mão direita procura o copo que tantas vezes funciona como rato e cursor. Olho para os meus dias tristes, faço contas, e os meus olhos procuram o rato antes de chorar. Fizemos, meu Júlio, o teclado onde nos deitamos com uns sonhos que são, todos e cada um, um imenso despertar. Vem foder com sotaque aqueles cabrões fluorescentes que não percebem que viver na rua firmeza exige arrancadores presos ao tecto da imagem que voa, que ameaça, que resmunga, que arranha. E por isso te beijo: andas por aí nas canções que a nossa amizade trauteia a servir uma cidade íntima de versos e desenhos, mas de forma calada: grita agora, grita comigo, connosco no meio de um século apenas cheio de inícios e madrugadas exuberantes.
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