domingo, outubro 24

Da casa

Há dias assim, em que o recolhimento escapa pelas frinchas e, de súbito, o vento faz-se convidado e instala-se. Traz com ele o ruído, a agitação, os destemperos, o desarrumo, cheiros e frescura. Parece insistir na ideia de posto de observação contaminado pelo mundo. Acolhedor, portanto.

A minha gata...

...consegue fazer da casa um enorme palacete. Há poisos de soneca diferentes por época. Agora ocupou o sofá, o lugar mais exposto até hoje. Há detalhes que nunca veria se ela os não mostrasse com contorcionismos esguios e equilíbrios precários. E recantos cheios de mistério que só ela conhece.

Mudanças e hesitações

Chegaram árvores aos meus dias tristes: são uma alegria. O Manuel António Pina já me tinha chamado a atenção para o livro que originou o blogue, mas ainda não o tenho: pura preguiça quando o editor é amigo.
Entretanto, o muro caiu sem estrondo. Confirma o que venho dizendo, sem espectáculo, os leitores vão-se. E se por ali ainda se tentava o circo da opinião, por aqui é tudo tão íntimo que o interesse cai como folhas no outono: tudo castanho e lamacento.

Very Important News #07

Algures no estado norte-americano da Florida, em Fort Walton Beach, um grande carvalho assinala o mercado local de droga e prostituição. O Sheriff da zona, pressionado pela “comunidade”, encontrou a solução para resolver a “constante parada de crimes e prisões”: pediu autorização para cortar a árvore.

quinta-feira, outubro 14

quarta-feira, outubro 13

A minha gata...

...dorme, dorme muito como todos os gatos assim alheios ao mundo. Recolhe-se de muitas maneiras, mas esta enrolada em esfera peluda é a mais curiosa. Às vezes brilha um olho por entre o negro: pequeno mundo curioso.

quarta-feira, outubro 6

Da casa

Restos de uma vida à espera de outra. Para que nos serve tudo quanto acumulamos?

terça-feira, outubro 5

Encontros #05

Acabo de almoçar com o Paulo e a Cristina. (Zé, tens razão: nomes próprios são melhor que siglas.) Nem todos os meus encontros são à mesa, mas muitos deles, talvez os mais intensos, acontecem aí. Se descobrir porquê, aviso. O Paulo é um companheiro de há mais de trinta anos, agora afastado para o interior, dedicado à terra nas salas da universidade, mas nunca afastado de mim. São muitas as palavras e os silêncios que nos unem. Hoje, misteriosamente passámos o tempo mastigando ideias sobre o núcleo duro ético que toma parte das religiões, para além do misticismo, o que aconteceu a propósito dos desejos de vingança e da gestão das nossas vidas (prosaicas) a partir das psicologias ou das astrologias. Dietas é outro dos temas, por ora, recorrentes e por isso houve chocolate e promessas de cabrito e outras delicadezas. Não trouxe respostas para os dilemas (prosaicos) e só guardo as promessas de receitas a provar. E a partilhar. Bem haja pela companhia e pelo prazer, digo eu. Prosaicamente.

Faz hoje anos que morreu o Júlio

O Júlio sabia que a vida era uma puta. E por isso as admirava, às putas. E delas só queria um beijo na boca. O Júlio beijou a vida na boca e descobriu cedo que o sabor era amargo. Foi à clandestinidade em nome de valores, acreditando que era quase comunista. Descobriu, cedo, que era demasiado libertário para aceitar as grilhetas ideológicas. A sua arma de mão, lâmina fria, foi o humor – nunca de algibeira sempre cortante, tão lúcido que até doía. Ainda um dia vamos acordar com uma pérola no cu e descobrir que a sua filosofia era de ponta. Este libertário romântico que não gostava de romantismo odiava o proselitismo tanto como gostava da escrita e das partidas que os dias nos pregam. Conheceu o Bairro Alto e a noite do avesso e um jornalismo feito de pessoas e imaginação. Foi o preguiçoso mais trabalhador, o mais dócil dos provocadores, o mais convivial dos individualistas. Participou de todas causas e todas o traíram, como está bem de ver. Ainda assim acreditava no que nos protegia da vida e que é a vida ela própria: as discussões, as jantaradas, as bebedeiras, os projectos, as pessoas. O Júlio ofereceu-nos uma especial inteligência. E é por isso que só a sua morte, no aniversário de uma revolução, ainda me deixa estúpido.

Encontros #04 B

Na longa conversa com o Zé e com o Paulo brotou um dilema saboroso, a propósito de críticas desenhadas por Art Spiegelman (se alguém pedir, disponibilizo também a minha primeira leitura de In The Shadow of No Towers) à gestão bushista do mundo. A crítica especializada tende a enterrar os livros em estranhas apreciações que afastam leitores, demasiadas vezes passando ao lado dos temas em discussão. É como pegar em Maus, obra magna de Spiegelman dedicada ao Holocausto e à ralação com o seu pai, e começar por dizer que algures desenhou mal um cão. A forma joga aqui com o conteúdo de modo fulgurante. Neste livro, mais do que as questões teóricas e formais, que ele nunca abandona, interessa-me ler o modo como aquele criador reporta (e daquela maneira) um acontecimento que mudou o mundo (ou, pelo menos, a sua percepção). Os encontros de que aqui vos falo, embora para eu recordar, são de puro gozo partilhável.

Media Vaca

É uma metáfora funcional: na página de entrada, metade de uma vaca ou revela o esqueleto ou liberta moscas e formigas. Os livros desta editora para crianças de todas idades, escolhidos a partir de Valencia pelo Vicente e pela Begoña, possibilitam surpresas de tipo semelhante. São cuidados, apesar de simples; são iguais apesar de infinitamente distintos; estão cheios de letras e mundos, apesar de ilustrados com saber. São livros grandes. Se alguém pedir, posso publicar a recensão que fiz para o Expresso a propósito de um belo dicionário, que funciona como jogo, no qual entraram ilustradores portugueses. Mas só se houver leitores que peçam...

Leitores

Diz um amigo, nem por isso tímido: «aquilo que está no teu blogue, só mesmo tu e talvez o PN e o JCN podem ter alguma ideia do que quer dizer. Os leitores o que pensarão? Ou esqueces-te que o blogue tem leitores? Talvez eu seja antiquado e não perceba nada destas modernices, mas se publicasse uma nota sobre o almoço diria qualquer coisa corriqueira e pouco literária como "fui almoçar com fulano e sicrano e" e aí contava mais ou menos o que se tinha discutido. Mas não vejas isto como uma crítica; o blogue é teu e fazes o que quiseres. Apenas comentei que só tu podes perceber o que lá está.»
Ora não creio que este blogue tenha leitores. Aliás, o gozo que dele retiro advém do facto de, fingindo que há leitores, escrever para mim, como em diário. Não há leitores para diários? Se calhar este, como tantos outros, é mau, umbiguista e sem sentido. A minha única pretensão era ser literariamente corriqueiro. Falhei, pelos vistos. Continuarei ainda assim em busca de uma qualquer obscura clareza. Valerá a pena procurar leitores?

domingo, outubro 3

Crítico Postal #03

A foto não vem assinada. E devia, embora nada mudasse. É uma foto de montanha. Isto é, de nuvem. Ou seja, de abismo. Ou melhor de vento, talvez voz. Só posso adivinhar-lhe o sentido, mas não asseguro. Nenhum sentido é seguro: ao baixo? Ao alto? O convite é para um livro, que há-de conter palavras e nelas acontecerão poemas de JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA. Esta voz é quase o vento. As vozes serão ouvidas no céu da boca de Lisboa, em breve. E as palavras com poemas por acontecer estarão disponíveis para entrar nas casas e nas vidas explodindo como vento. A foto é a preto e branco, como tudo o que é dramático. Como a câmara lenta que arrefece o movimento para sentirmos mais, com mais clareza, com a frescura da nuvem por dentro. A foto não está assinada, mas The Famous Grouse apoia.

sábado, outubro 2

Encontros #04

Há um lado delirante nas conversas com o PN e o JCN. Implicamo-nos como doidos nas discussões que, depois de tocarem a actualidade e a política, acabam na margem de um qualquer oceano importante. Foi assim ontem, com a tarde passada a detectar o cristalino lugar do romance, o sítio no nosso mapa íntimo para a atlântica arte de contar histórias e mexer com a vida dos leitores. Mas ainda haverá leitores?

quarta-feira, setembro 29

A minha gata...

...sofre do fascínio das malas, das mochilas, dos sacos. Contudo, não gosta de viajar. Ou será que entrando neles vai de algum modo aos sítios que ainda sobram nos cheiros das malas, das mochilas, dos sacos?

Sanfona

EGBERTO GISMONTI é um génio. Toca qualquer coisa – a voz de Olivia Byington, piano, guitarras, flautas ou explicações – de um modo sensível e reflexivo, que é suor e movimento, que é metal e borracha, que é pedra e beijo. Toca para nos tocar: a alma é um ritmo, uma pele que vibra. Ontem fui tocado com uma fala de paixão. Acho que era noite.

quarta-feira, setembro 22

Recordações dela, a velocidade


Conas

Livros há que são armadilhas. Talvez os bons sejam os que nos apanham desprevenidos algures: no momento em que avançamos pela acção fora, esquecidos já do fio das frases, líquido ou áspero, quando levamos o soco no estômago de uma evocação, uma ténue lembrança, uma reflexão ou apenas a reverberação de cristal da palavra na folha. Na múltipla escolha das vidas, também livros que nos batem mais tarde, sem explicação aparente, para nos iluminar um momento, aquecer uma tristeza ou, por comparação, que a complexidade do que vivemos está toda ali, na simplicidade de uma cena.
Conos, de JUAN MANUEL DE PRADA (Fenda), é uma surpresa, mas não é por nada disto. E muito menos porque fala de assunto arredado das literaturas: as conas, pudicamente passadas a masculino na capa, mas muito mal passadas, digo eu. Até porque uma das qualidades do texto é a sua precisão, que, como é sabido, é sempre cirúrgica (e bem vertida foi no português de José Carlos González). Há qualquer coisa de médico na frase de Prada. É fria a sua aproximação ao assunto, mas sucessiva. Sem nunca repetir a perspectiva, olha de soslaio, mordisca o assunto e depois repete. Manuseia a ironia com um bisturi, um bisturi de papel vegetal. A transparência esconde, portanto, ideias – belas e sinistras ideias, quotidianas e fantasistas ideias, absurdas e belas imagens. O todo revela-se aqui nas partes, o que é sinónimo de arte breve: um início de conto, um haiku desenvolvido (túrgido?), uma reflexão esboçada. Mas chega para criar um ambiente, apresentar personagens e sugerir erotismos dos mais puros. Prazer aqui é o da frase, o da escrita, também ela em lógica erótica sem olhar a consequências, o que, em parte, é devedor do mestre homenageado RAMÓN GÓMEZ DE LA SERNA (o de Seios, Antígona). E não olha a consequências. Mas isso que interessa? Basta o enorme gozo e a perícia. Este livro é inclassificável, como o são, a princípio, as surpresas. Bendita esta estranheza que se solta das conas. Bendita esta vontade de aprender. Do conto Refutação de Henry Miller: “A espeleologia da cona exige métodos artesanais que aumentem a tremura fervorosa das mãos penetrando num recinto cheio de estalactites e estalagmites, embalado pelo musgo tépido da púbis, ressumante de líquidos e pudor”. Bendito pudor.

quinta-feira, setembro 16

A minha gata...

...é equilibrista em mim. Ainda não caiu, mas guardo a memória dos arranhões.

terça-feira, setembro 14

Crítico postal #02

Árvores, parapeito alinhado, vasos vazios, vários a perder de vista, e um friso de estátuas, três que parecem momentos distintos do virar-se. Isto é a primeira linha, um horizonte, digamos. Um jardim de horizontes, de linhas de terra. A foto ao alto é toda ela uma sucessão de horizontes, texturas sobre o branco. O alinhamento das cadeiras é o essencial pois convida a um livro sobre os passeios e o flâneur, que é poesia e artes visuais, que é mudança de vida e espanto. White é o nome do poeta que nos apresenta a cidade, Paris, mas podia ser outra Porto, Praga. A neve é o que aqui convida à leitura, ou até a algo mais. Um convite é um apelo e outras informações estão no verso, mas não me interessa e envolve sublimes audácias. Até as letras estão a mais sobre a foto anónima, como a neve. A imagem valia por si, sem títulos, autor ou editora. Nenhuma cidade vem nos guias. As palavras são outros mapas, mapas que se sobrepõem, como corpos. É por isso que aqui moro na cidade. Ansiando pela respiração da neve.