sexta-feira, agosto 13

A minha gata,

apesar de preta toda ela, não liga peva às sextas, 13. Eu gosto.

A minha gata...

...é preta toda ela.

Encontros #02

Estive antes de anteontem com TM e aconteceu aquilo que se tornou um feliz hábito. Ainda que não preparemos projectos, o que era o caso, as conversas fazem com que nos entreguemos, nos impliquemos de modo a colocar sobre a mesa perspectivas, opiniões, sensações, filosofias domésticas e credos selvagens. Regresso sempre rejuvenescido destas viagens em torno de ideias ou imagens. É raro. Cada vez mais.

Encontros #01

Estive anteontem com MK e regressei encantado com a alegria de viver e o modo de olhar ou o modo de viver a alegria do olhar ou o modo como olha a vida com modos ou o modo de alegrar a vida do olhar. Tem 90 anos muito ilustrados, esconde o cansaço por detrás da humildade que, por sua vez, esconde orgulhos de pioneira. Possui o encanto de quem faz coisas e se deixa fazer por elas. Com humana intensidade.

Da casa

Estou quase a deixá-la. Tenho saudades. Outra vez.

Da casa

As janelas que vejo da minha janela não chegam para me encher os olhos. Há uma fileira militarizada, junto ao chão dos gatos. Serão camaratas: não interessam. Ao longe, na noite só, brilha uma pequena. É a mais próxima da Lua, uma autêntica companhia. Na direita, no prédio que protege as escadas com uma curva, acontece um círculo perfeito que deixa ver alguns degraus, solitários. Nesse prédio, ilumina-se um quadriculado perfeito como manhã de sábado. No andar logo em cima vi uns olhos a estenderem peças de roupa. E depois vejo varandas.

Da casa

A televisão adoeceu, há alguns meses. Ou seja: o centro da sala deixou de respirar, de se iluminar, de comover e movimentar-nos. Pouco tempo depois, por sobre o ecrã grande cresceu um pequeno que há meses ali pousou. Não sei se é um tumor do grande ou um pássaro de arribação. Quando tiver tempo vou resolver o enigma.

quarta-feira, agosto 11

Da casa

Estou quase a deixá-la. Tenho saudades.

Da casa

Não é curioso? Pedem-me, para comprar um carro, que lhes prove que moro aqui, em casa. E se me recusassem a prova de vida, se garantissem com documentos que estou morto ou em parte incerta?

Da casa

Vejo daqui uma pele de pó sobre as coisas. Certas e quase secretas coisas que o sabem merecer, como um dom de tranquilidade.

Da casa

O Sol tem comido a ilustração atlética da casa de banho. Vou deixá-lo matar a fome de cor, quem sabe se não escrevo um conto sobre o assunto. O desperdício não me atormenta: o trabalho até está assinado, em italiano e no feminino.

Da casa

São duas as assoalhadas líquidas, aquelas onde não deixa nunca de correr água. Ouve-se, mas não refresca. O desperdício atormenta. E agora chove. Vou subir os estores e deixar as gotas entrarem.

sexta-feira, agosto 6

Um dia como esta tarde

Como acaba um dia cheio de possibilidades?
Mesma a esta, hora as sombras dançam o mambo. Só a música, só mesmo os dedos do pianista são capazes de indicar um caminho nas montanhas prediais cruzadas pelo rio do trânsito.
Um dia de possibilidades não acaba nunca.

A minha gata...

...está sempre disponível para brincadeira. Pergunta meta-difícil: jogar é a vocação do gato, com o pássaro e o rato, com a bola e a luz, com o miúdo e a mosca? Aliás, soube hoje, da pessoa certa, que Pessoa brincava doido com as crianças.

quinta-feira, agosto 5

Very Important News #04

Apesar dos fogos, da devastação, da miséria, da tristeza, na Serra de Monchique foi confirmada a presença de borboletas-monarca. Segundo os especialistas, é de prever um aumento das colonizações nos próximos anos. Naturais do continente americano, estes símbolos da fragilidade migram do Canadá para o México, onde chegam no Dia dos Mortos, para passarem o inverno. É lá, a sul, que procriam.

In Memoriam: HENRI CARTIER-BRESSON (1908-2004)

Deixas o reflexo líquido dos acontecimentos que arderam pelo século. Os rostos e os saltos do mundo são mais humanos por via das pinturas que coreografaste com uma Leica e os passos do viajante.

quarta-feira, agosto 4

Cacos

Andei enganado. Até há pouco cuidava que a mais dolorosa das mortes era daqueles que partiam: sinto a falta de muitos. Rezo os seus nomes, invoco momentos, prazeres partilhados, palavras que cresceram entre nós e floriram. Andei enganado, pois a mais dolorosa das mortes é a daqueles que, apesar de vivos, cospem a seiva da planta que é a amizade. O território onde parecia que repousávamos era caixão acolchoado, cama de passagem, sem memória. Pedaços de vidro que servem de tapete aos pés descalços, é só o que sobra, nem uma pétala ou um perfume. São tantos que só posso ter-me enganado acerca da amizade ou das pessoas. Ou de mim...

segunda-feira, agosto 2

Recorte #02

«Como jogar com as palavras»
por JOÃO MIGUEL TAVARES

Diário de Notícias, 2 de Agosto de 2004

Com o lançamento do terceiro e quarto volumes, já se pode arriscar dizer que a série «Olho Vivo» - uma colecção de livros infantis lançada pelas Edições Afrontamento - é um dos espaços de experimentação mais interessantes do espaço editorial português, quer pela qualidade dos ilustradores convocados para o projecto, quer pelo investimento literário de João Paulo Cotrim.Quem se interessa pela banda desenhada portuguesa já terá esbarrado algures com Cotrim, seja como autor, seja como crítico, seja como organizador, seja sobretudo como director da Bedeteca de Lisboa, numa época saudosa em que ainda havia meios para trabalhar. Graças à sua acção, a BD portuguesa obteve um reconhecimento inédito e alcançou uma variedade e uma qualidade sem paralelo na sua história. Nos últimos anos, contudo, Cotrim tem vindo a desenvolver uma actividade sustentada como argumentista, tanto em livro como em projectos ligados a publicações periódicas (À Esquina, no jornal Público, e actualmente Crimes Exemplares, na Grande Reportagem, contando ambos com desenhos de Pedro Burgos).Cotrim é dono de um estilo floreado, onde os jogos de linguagem são uma constante e se espreme até ao caroço os vários sentidos das palavras. Em texto longos, este tom luxuriante correrá sempre o perigo de cair num excesso de barroquismo, mas o autor tem-se inteligentemente dedicado à história curta, produzindo ora obras enxutas, ora textos onde a elaboração da linguagem se mantém vigiada, no registo certo, apostando numa poetização do real - é isso que acontece nos dois livros para crianças de que aqui se fala, O Homem Bestial e Viagem no Branco.É desde logo motivo de admiração o facto dos quatro volumes da colecção «Olho Vivo» serem muitíssimo diferentes entre si, menos pela diversidade de estilos dos ilustradores do que pela inventividade de que Cotrim dá mostras em cada texto. Com a concisão de um haiku, O Homem Bestial parte de uma ideia que sendo simples está muito bem achada - a presença de nomes de animais na linguagem do dia-a-dia. Assim se contrói o «homem bestial», que tem «olhos de lince», usa «rabo de cavalo», corre «como uma lebre» e é «mais chato que uma melga». Os desenhos de Maria João Worme ilustram o texto de forma bastante directa, ainda que a complexidade do seu estilo possa causar algumas dificuldades aos mais pequenos.Já os desenhos de Miguel Rocha em Viagem no Branco são de mais fácil leitura, embora ele tenha optado por um registo estranhamento sombrio para um livro com tão alvo título. Aqui, é o texto de Cotrim que se complexifica, multiplicando os níveis de leitura. Desde «as árvores onde nascem as folhas de escrever» à rã descoberta no «b(r)anco», é todo um mundo poético que se abre aqui, com um toque surreal que resiste às apropriações de sentido. Francamente, não sei quantas crianças serão capazes de compreender isto, mas não há como negar o seu engenho.


O homem bestial Autores. João Paulo Cotrim e Maria João Worm Editora. Afrontamento Páginas. 32 Preço. 7,50 Classificação. ¢¢¢¢

Viagem no branco Autores. João Paulo Cotrim e Miguel Rocha Editora. Afrontamento Páginas. 28 Preço. 7,50 Classificação. ¢¢¢¢