sexta-feira, fevereiro 3

Poema ou assim #13

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presente

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comovi
do

futuro

terça-feira, outubro 4

poema ou assim #02

Para o Manuel San Payo, urso maior que só brilha à noite

BUNNY
bocado original:
nascemos cada dia com
nó na garganta
procuramos lugar onde depositar
o soluço

quem canta percebe melhor:
não há nem pode haver
andaime ou ensaio
apenas o peito a encher-se
cada qual ardendo antes d’
a voz
que o há-de consumar

quem pinta sabe-o bem:
o sítio tra veste-se de tela ecrã tablete
como o lugar se ergue casa da cor
onde recebe
cor pos pincéis olh ares
para morar só de passagem


&
tenho a barba
traz tu a cerveja

rompeu um pátio no meu peito
onde o azul descansa do chicote das
árvores
agora que os pássaros adoptaram as
cobras


BEAR
as mãos
abrindo a cortina da novidade
permitem que a paisagem
entre com tudo ainda fechado
nem choro nem riso
apenas paisagem:

no topo nascente além dos
prédios
com os passeantes tatuados nos
seios
vê-se a cidade que grita
à esquerda de quem amachuca o mapa
enquanto os outros se perdem
de novo na cave
sangrenta dos segundos

congelado e quieta fica
a paisagem
enquanto
dos dedos do pianista
dos dedos do pintor
escorrem
respirações suspiros
de quem vai
porque o dia voltou a nascer
& o aguarda um companheiro


não são pares
os olhos, as mãos, os pés?


sábado, setembro 17

Mecânica dos Fluidos

A simplicidade reconhece-se, mas custa a explicar. Bunny and Bear são personagens que nos acompanham desde a fundação do mundo. Talvez estivessem camufladas ou talvez estivéssemos nós distraídos, metidos connosco sem ver com olhos de ver. Agora que Manuel San Payo as apontou, à força de dedos e pincéis, são-nos inseparáveis: como o ar que se respira, o chão que se pisa, a luz que nos enche, a paisagem que se sorve. Vejam bem: Bear nasceu de uma mancha, cor sobre cor, corpo na cor: vermelho. E logo o branco a comentou: Bunny. Estavam mesmo ali, está visto. Não mais deixaram de se brincar. Há uma série exemplar: se a tela se apresenta branca, há que tingi-la. O urso vira pintor, mas de paredes. O que era visível logo se esconde quase desaparecendo: sobram apenas olhos, uns olhos que nos fitam em desespero. Eis o trabalho do pintor: mudar a superfície das coisas até desaparecer nelas. E devolver em espelho a angústia da existência. Mas que anti-depressiva é a angústia de Bunny and Bear! Seres portáteis, diletantes de andar pela rua, foram recolhendo detalhes, sublinhados com uma legenda, um título. Por vezes citam pinturas e pintores. Noutras abusam do tema do dia. Amplificam gestos. Provocam. Trocam de pele e de papéis. Surgem do nada e no meio de nós. Interpretam perante os nossos olhos um pequeno teatro das relações (pequeno e grande, textura e superfície, longe e perto, ternura e paixão, espaço e pormenor, momento e movimento). Levantam questões acerca da cultura popular, da cultura visual, do gosto e do desgosto, dos modos como vemos e damos a ver. E conversamos ou silenciamos cada um desses assuntos. Se nasceram do percurso quotidiano e diarístico de Manuel San Payo, pouco demorou a pularem nas redes, transfigurando-se em criaturas sociais, figuras públicas. Para cada situação, por cada peripécia, os rostos e respectivas expressões oferecem-nos conforto e explicação. Os nossos dias são doravante animais. E estão por todo o lado. Manuel San Payo descobriu um mecanismo, bem oleado pela sua característica ironia, que se tornou a matéria dos dias: Bunny and Bear explicam-nos a política, nacional e global, resolvem-nos os afectos, fazem-nos rir, mas tudo sem querer. Nada os ocupa nem preocupa: nos mais variados formatos e suportes existem apenas. Perturbador de tão simples.

quarta-feira, julho 6

A minha gata...


...quando era mais ave, pousou no ombro do mano poeta Gaspar e trespassou com vivacidade o olho da máquina, do fotógrafo Vilhena e de quem mais morava no momento.

quarta-feira, março 30

poema ou assim #01

As nuvens foram coladas com fita
palco de teatro suspenso no terror
e nisto de ventos não anunciados
soltas o cabelo polvo
de modo a encher a noite de cata-ventos
puxando pelo gesto o peso pluma
a pisar sem esforço o horto inútil
escalando o amanhecer dos mapas reunidos e
amarrotados do sorriso
ofensa e desafio.

Os nimbostratus deixaram-se ficar quedos.

segunda-feira, março 21

A minha gata...

...ainda que durma, mal ouve a voz do afecto abana a cauda. Apenas a ponta, em todas as direcções. Tudo lhe diz respeito, portanto, mas por pouco.

quinta-feira, fevereiro 17

Trilateral #01

Um triângulo de amigos resolve, de súbito e a despropósito, encontrar-se com regularidade apenas para comer. Não partilham nem clube de futebol, nem género literário ou sexual, para não dizer já perspectivas geográficas (bom, estas...) ou económicas. Chegam não muito cansados de sítios assaz distintos para se sentarem à mesa dos assados (sem excluir grelhados ou refogados). Começou assim e nisto apenas pelo comer, mas logo se tornou bastante mais, apesar de menos na aparência: encontro sem outro sentido além desse mesmo, juntos à mesma mesa (por vezes duas juntinhas a fazer de conta), conversa solta sem agenda, pretexto para repetir a interrupção das agendas. Hoje falámos de política, mas foi sem exemplo, que nada nos interessa para lá de amizade e de uma ou outra notícia, como da inusitada exposição dedicada aos Lugares de Santiago. São assim as conversas, juro. Saudámos de passagem um tal de Júlio Pinto, co-fundador do Grupo de Lazer Heterossexual, em resposta a certo Grupo de Trabalho Homossexual, nos idos de 1990, quando o politicamente correcto começava a roer as canelas da mesa.
O pretexto da comida partilhada levou-nos já, e para dar apenas dois exemplos, ao Sem Maneiras ou ao Tavares Rico, ainda no tempo do José Avillez. Hoje foi a vez da Tasca da Esquina, projecto, como agora se diz, do Vitor Sobral. Nem todos os petiscos nos levaram ao paraíso (que fica longe do parlamento), mas aponta-se como momento supremo (e repetível) o atum quase cru em molho avinagrado. Vale por si só a viagem ao bairro de quadrícula, pessoano ou nem tanto.
Não possui, contudo, aquele sentido de tasca que nos obrigaria a ficar na esquina a ver o resto do dia a passar, a desperdiçar-se, a desfazer-se. Para tasca está demasiado presa de horários, de expedientes e modos, diria, obreiristas de fazer. Sobra ainda que, pelo preço de um Bushmills mal servido, bebo uns quatro noutras tascas de outras esquinas. Não me olhem assim, que por tal me não parecer despiciendo diz bem do que trago do sítio. Quero eu dizer que, noutras esquinas, o mesmo preço não me parece caro.

Retrato do Porto, minúsculo ardendo

Admito que outras cidades aconteçam assim no nosso coração, mas cada ida ao Porto obriga-me a digestões difíceis, não apenas por causa das tripas, dos afectos ou do granito. Esta cidade mantém um modo de conservar segredos à frente dos olhos que a desmultiplica como quem refaz, nunca do mesmo modo, uma velha receita. Aqui há uns tempos reencontrei em casa vermelha afastada do centro um velho amigo dos de todos dias, dos de antes como dos de mais adiante. Chorei durante o abraço não tão longo como me apetecia, fingindo assim daquelas normalidades que detesto. Diz-me agora outra voz amiga, nesta cidade de cruzamentos entre o que fica e o que flui, que devia vencer preconceitos e ignorâncias (no geral, irmãos gémeos) e espreitar no Soares do Reis a exposição do Artur Loureiro. Fui, sem resistir a passear-me antes (e depois...) pela exposição permanente que inclui humidades e outros fungos(deixo algumas impressões duradouras para comentário posterior). Atenho-me agora no Artur Loureiro, que se gostava de apresentar como pintor fracassado. Ora os fracassos e seus mentores, deste ou de outro modo, interessam-me por razões muito íntimas, mas este fantasma fica, também ele e por agora, afastado desta visita.
Impressionaram-me tanto, mas mesmo muito, e para além de um barco e de uma certa paisagem com rio (não por acaso, claro; tudo minúsculo, claro), os seus auto-retratos (plenos de ironia e luz, mágoa com deleite). Não sendo fácil encontrar no gesto o espelho exacto que revela sombra e luz e, portanto, humanidade, com o que esta sabe misturar de claridade e obscuridade (o Porto é cidade tão humana!), o pintor que seja capaz de se entregar na tela resolve aos meus olhos esse problema da ciência, aquele da dança amorosa entre objecto e sujeito. Artista que seja capaz, como Artur Loureiro, de se deixar esmagar pelo seu próprio olhar objectivando com suprema subjectividae projecta-se muito para lá do sucesso, incarna o enigma de Agamben: «contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o raio de trevas proveniente do seu tempo». Loureiro, sei-o agora, foi tão ou mais contemporâneo que os seus, apesar da paisagem. E isso nota-se mais ainda e com ironia nos retratos que dois amigos lhe dedicaram, Abel Salazar e Columbano Bordalo Pinheiro: são ardentes e difíceis, rasgados e minúsculos, como malagueta ou uma cavilha de Páscoa, isto para começo de conversa.