quarta-feira, setembro 29

A minha gata...

...sofre do fascínio das malas, das mochilas, dos sacos. Contudo, não gosta de viajar. Ou será que entrando neles vai de algum modo aos sítios que ainda sobram nos cheiros das malas, das mochilas, dos sacos?

Sanfona

EGBERTO GISMONTI é um génio. Toca qualquer coisa – a voz de Olivia Byington, piano, guitarras, flautas ou explicações – de um modo sensível e reflexivo, que é suor e movimento, que é metal e borracha, que é pedra e beijo. Toca para nos tocar: a alma é um ritmo, uma pele que vibra. Ontem fui tocado com uma fala de paixão. Acho que era noite.

quarta-feira, setembro 22

Recordações dela, a velocidade


Conas

Livros há que são armadilhas. Talvez os bons sejam os que nos apanham desprevenidos algures: no momento em que avançamos pela acção fora, esquecidos já do fio das frases, líquido ou áspero, quando levamos o soco no estômago de uma evocação, uma ténue lembrança, uma reflexão ou apenas a reverberação de cristal da palavra na folha. Na múltipla escolha das vidas, também livros que nos batem mais tarde, sem explicação aparente, para nos iluminar um momento, aquecer uma tristeza ou, por comparação, que a complexidade do que vivemos está toda ali, na simplicidade de uma cena.
Conos, de JUAN MANUEL DE PRADA (Fenda), é uma surpresa, mas não é por nada disto. E muito menos porque fala de assunto arredado das literaturas: as conas, pudicamente passadas a masculino na capa, mas muito mal passadas, digo eu. Até porque uma das qualidades do texto é a sua precisão, que, como é sabido, é sempre cirúrgica (e bem vertida foi no português de José Carlos González). Há qualquer coisa de médico na frase de Prada. É fria a sua aproximação ao assunto, mas sucessiva. Sem nunca repetir a perspectiva, olha de soslaio, mordisca o assunto e depois repete. Manuseia a ironia com um bisturi, um bisturi de papel vegetal. A transparência esconde, portanto, ideias – belas e sinistras ideias, quotidianas e fantasistas ideias, absurdas e belas imagens. O todo revela-se aqui nas partes, o que é sinónimo de arte breve: um início de conto, um haiku desenvolvido (túrgido?), uma reflexão esboçada. Mas chega para criar um ambiente, apresentar personagens e sugerir erotismos dos mais puros. Prazer aqui é o da frase, o da escrita, também ela em lógica erótica sem olhar a consequências, o que, em parte, é devedor do mestre homenageado RAMÓN GÓMEZ DE LA SERNA (o de Seios, Antígona). E não olha a consequências. Mas isso que interessa? Basta o enorme gozo e a perícia. Este livro é inclassificável, como o são, a princípio, as surpresas. Bendita esta estranheza que se solta das conas. Bendita esta vontade de aprender. Do conto Refutação de Henry Miller: “A espeleologia da cona exige métodos artesanais que aumentem a tremura fervorosa das mãos penetrando num recinto cheio de estalactites e estalagmites, embalado pelo musgo tépido da púbis, ressumante de líquidos e pudor”. Bendito pudor.

quinta-feira, setembro 16

terça-feira, setembro 14

Crítico postal #02

Árvores, parapeito alinhado, vasos vazios, vários a perder de vista, e um friso de estátuas, três que parecem momentos distintos do virar-se. Isto é a primeira linha, um horizonte, digamos. Um jardim de horizontes, de linhas de terra. A foto ao alto é toda ela uma sucessão de horizontes, texturas sobre o branco. O alinhamento das cadeiras é o essencial pois convida a um livro sobre os passeios e o flâneur, que é poesia e artes visuais, que é mudança de vida e espanto. White é o nome do poeta que nos apresenta a cidade, Paris, mas podia ser outra Porto, Praga. A neve é o que aqui convida à leitura, ou até a algo mais. Um convite é um apelo e outras informações estão no verso, mas não me interessa e envolve sublimes audácias. Até as letras estão a mais sobre a foto anónima, como a neve. A imagem valia por si, sem títulos, autor ou editora. Nenhuma cidade vem nos guias. As palavras são outros mapas, mapas que se sobrepõem, como corpos. É por isso que aqui moro na cidade. Ansiando pela respiração da neve.

segunda-feira, setembro 13

Very Important News #06

Um qualquer Batman está pendurado perto de uma varanda alta em uma parede do Palácio de Buckingham. É um activista (fathers 4 justice) e pede para para falar com a Rainha. Será que ela o atende sem marcação? De qualquer modo, tem melhor gosto que ela, no que à roupa diz respeito.


Crítico postal #01

Um tabuleiro de xadrez, estático na dança de quadrados bicolores, na variação de formas agora ao alto. Dois casais enfrentam-se, olhando quem agora os olha. Espelhos, cadeiras, mesas de estilos variados mas anunciando pompa. Uma das mulheres, a única que se ergue, desafia-nos com o olhar: o pior dos desafios. Cada par de sapatos são outras tantas agulhas que prolongam o olhar até onde o permitirmos. Cabeças pequenas, rostos redondos, corpos sentados e desarmónicos, quase todos. Agulha, cada sapato como antena, braços de bússola, ponteiros de horas que deixaram de existir. O conjunto sofre de largo enquadramento de branco, desigual pois se trata de um rectângulo que absorve óleo sobre a tela. As cores são pastel e por isso vibra aquele rosa-choque que indica (autor) KONSTANTIN BESSMERTNY e (galeria) Monumental. Mais informação não se vê daqui, está no verso. Um convite é um apelo, um junte-se, um venha até aqui connosco, um venha ver, às tantas, um esperamos que compre. Este, com as suas cores frágeis sobre branco, sussurra: nós estamos aqui e aqui ficaremos indiferentes. A imagem, como a música, sabe bem mentir. Aparentemente estes nobres russos recebem bem, mas apenas para nos assassinar. É por isso que vou.

sábado, setembro 11

Sítios

Por causa do Alex, entrei em lugares únicos que, sem nada terem que ver com a actualidade, são, num caso, contributos para não nos deixarmos esmagar por apenas uma ideia de cultura árabe, e, no outro em insupeita relação com o anterior, uma redefinição constante e orgânica da imagem-feita de mulher, que pode ser resposta a esta que nos chega via Madonna, mais mental e financeira do que é comum assumir-se.

Encontros #03

Anteontem, em ritual que se repete a cada dois anos, mais coisa menos coisa, jantámos com RG. Os cabelos brancos pontuam a política afirmação dos seus olhos: é dono de intensa curiosidade, mas a emoção está domada. É que, nos últimos tempos, a sua perspectiva social, de serviço aos outros, aos outros pobres, foi-se impregnando de oriental espiritualidade. A investigação teórica não está abandonada, os seus interesses são os mesmos, mas suas interrogações estão agora cheias de disponibilidade, de paciência para o que não entendemos, para as mudanças que ansiamos.

quinta-feira, setembro 9

Munch


Ninguém nos rouba O Grito. Quem queira saber mais sobre o mundo do crime (absurdo) ou tão só sobre o mundo absurdo, é favor consultar a coluna «Crimes Exemplares», na Grande Reportagem (cada sábado, com o DN e o JN), ao cuidado de Pedro Burgos (desenho) e João Paulo Cotrim (argumento). A desta semana vai dedicada ao roubo de arte, a da próxima é sobre medicina (interna).

quarta-feira, setembro 8

Imagens fortes

A partir de amanhã e até dia 20 de Novembro, a Biblioteca Nacional, em Lisboa, acolhe ilustrações de MARIA KEIL. São originais feitos para títulos que vão de Páscoa Feliz, de Miguéis, aos Anjos do Mal que lhe apareceram recentemente. Também se poderão ver muitas das suas ilustrações para a infância e juventude. Encantadoras, digo eu.
A partir de ontem e até ao final de Setembro, o Museo de la Ciudad, em Madrid, recebe EL ALMA DE ALMADA EL ÍMPAR. São ilustrações para as crónicas e contos do escritor espanhol Ramón Gómez de la Serna, nas revistas La Esfera e Nuevo Mundo, bd’s e tiras cómicas publicadas em igual período no Sempre Fixe e no El Sol, na coluna Maestros de la Historieta. Além da preciosidade que são os originais de ilustrações para o jornal madrileno ABC e para a revista Blanco y Negro, e os seis desenhos concebidos em 1929 para La Tragedia de Doña Ajada, uma orquestração de Salvador Bacarisse para poemas de Manuel Abril.

segunda-feira, setembro 6

Da minha janela

Vejo a GNR a treinar atirando as armas em estranho ballet, ao qual os gatos do quintal, muitos e de todas as cores, ficam indiferentes. Só os tiros, secos e da mesma cor, os despertam. Por instantes (só se pensa por instantes em tais temas...), penso nos acontecimentos mortais dos últimos dias. Poucas certezas tenho, mas esta de que não nenhuma superioridade é moral ficará comigo, no meu pequeno jardim, até ao fim dos dias.

quinta-feira, setembro 2

Very Important News #05

A Slow Food, a associação que combate a fast food sob o signo do caracol, passou a incluir três das nossas obras de arte na sua lista de preciosidades: a broa de milho, o sal de Aveiro e um chouriço transmontano. Desconfio que serão apenas os primeiros sinais de excelência reconhecidos e provados.

A minha gata...

...está contente por voltar a casa. Sente-se no pêlo que deixou a agitação da vida animal na praia: pássaros, cães e aranhas estão, por ora, fora da sua agenda.