terça-feira, junho 29

Talvez

Sinto-me The Laziest Girl in Town. Não é comum, Nina, sentir-me assim, mas que queres que faça? A tua voz vai bem com o calor e a situação não tem rima possível. Talvez haja algures uma história terrível para contar, mas esta girl está sensível, só lhe apetece chorar. Então porque não choras, perguntas tu, habituada ao blues de terra, sujo e irremediável? Miúda preguiçosa não tem lágrimas, só suor. Amanhã, se for outra coisa qualquer, talvez cuspa a raiva das lágrimas. Talvez.

domingo, junho 27

Moscas

É capaz de haver um outro modo de fazer política, em torno de ideias e causas, mas não encontro o sítio no mapa. Com ensurdecedor zumbido, caem-nos as moscas no gaspacho. Aquilo que era anunciado, até há dias, como desígnio e projecto, passa num ápice a mero cargo, transmissível em herança ao mais triste dos nossos políticos. Não é que eu acreditasse nalguma das palavras laranjas (amargas), ou noutros frutos maduros, mas representado assim é mais um acto de teatro do absurdo. Zumbem, para um lado, apressadas opiniões, entre o sussurro conspirativo e, para outro, elogios em nome dos (amargos) interesses do país. Até o mais alto cargo da nação, em tom ruivo, veio dizer-se agoniado por toda a gente discutir como se ele não existisse. Será que existe?
Não posso deixar que isto me estrague o futebol, até porque laranja é cor que anda por aí em festa.

sexta-feira, junho 25

quinta-feira, junho 24

A minha gata...

...sabe ser só um olho, rente ao chão, ao dobrar de uma esquina. E de nada faz uma esquina.

quarta-feira, junho 23

Para acabar de vez com o dia

As nossas noites, minhas e de um ou de outra, hão-de ser as do tudo é possível. Nos dias em que tremia com a possibilidade de um beijo, a noite era o meu território. Nem as tardes de sábado, nem o escuro das danças, mas a noite que vinha mal os olhares trocados cobriam o Sol era o palco do meu teatro. Eu que não danço dançava, e a minha conversa interpretava, como ainda hoje, o tonto bailado de uma história sem nexo.
Como se falasse de sexo, os projectos mais doidos, a crença numa maneira de escrever ou num logotipo de revista aconteciam em plena noite, jamais turvada pela lúcida liquidez da distância que tínhamos de andar ou do álcool que bebíamos. Pouco importava se era numa cave solar ou no fazer de caminhos sobre a mais alta colina de Lisboa, querer andava misturado com o fazer e por isso as longuiiiiiiiiiíssimas noites eram iluminadas pelo mais inesperado dos sons ou das imagens ou das palavras.
A noite dentro do trabalho por acabar, do escrever à mão, do bater à máquina, do passar ao computador há-de ser sempre a noite, ainda que o Sol ilumine de vermelho cada uma das telhas vermelho tijolo. Só a ausência de luz permite a solidão que origina a criação. E a preguiça, pois a noite é todas as noites inutilidade, ronha e desperdício, senão mesmo crime. Para que serve o sono senão para dar à alma uma oportunidade de preguiça? O descanso é a miséria do futuro, mas o trabalho é a ocupação dos tristes. O sono é uma derrota. De olhos abertos, quando os outros dormem é a máxima para os que, mesmo quando os candeeiros se apagam, lhe bastam os mínimos para se conduzirem pelas ruelas obscuras.
As confissões mais lamechas e tontas, as lágrimas mais sentidas são vertidas no coração da noite. Nessa altura, e só nessa, músculos como o coração se sabem soltar e exercitar. Somos mais fortes durante a noite, mas também somos mais nós. É por isso que choramos, quando a amizade nos fere ou quando a surpresa nos dá nós.
A vida sabe ser um enjoo e daí que os vómitos mais fundos, mas também os mais fecundos, sobre a humana condição, surjam nas navegações noctívagas. A sensação amarga de nos cuspirmos é uma metáfora do desejo. É tanta a vontade de abandonarmos o navio-corpo ou a viagem-vida que nos surpreendemos com a energia do rasgo, com a força que parece vir do nosso centro mais profundo, mas que é só estômago. A digestão dos dias também parece arrotar nos sonhos, mal a luz se ausenta para parte certa.
Por tudo isto, e mais alguma coisa, a noite é, como só no feminino, a suprema surpresa do amor, o sopro perfumado da inspiração, a mais fina concentração, a mais impossível das possibilidades. Por tudo isto vos digo que a noite está em vias de extinção, agora que ela chega de mansinho.

Descrição 06

Voam papéis entre os olhos e o mundo. Agarro um desses folhetos, prospecto de rua. Que anunciará? Tudo é possível: reveillons, promoções de bacalhau, cartomantes e videntes, cartas de condução, restaurantes e vídeo-clubes, roupa e andares, concentrações, festas populares, cabeleireiros, serviços de construção civil, lavagem automática, saldos, pronto-socorro e móveis, alumínios, escapes e explicações, supermercados, talhos e seitas, remédios para o reumatismo, viagens. São tristonhas evocações do chumbo que se rasgam em tamanhos variáveis, mas que raramente se agigantam. Por ser pequena a gramagem, à beira da transparência, esvoaçam como folhas de um estranho Outono. Variam as cores entre o pálido discreto e o berrante inusitado. A ilustração é rara deixando a filetes, setas e estrelas, e restante catálogo de tipos a base da arquitectura. A composição resulta de saboroso caos surrealista: as letras obedecem ao critério maior de desperdiçar toda a sobriedade, de querer experimentar tamanhos, condensados e boldes, times e futuras, o máximo de sensações em um rectângulo. Comove-me esta crença na força da palavra: A sua vida nunca mais será a mesma depois de...

segunda-feira, junho 21

Dia seguinte

Este país merece uma alegria assim sofrida e engasgada. Por uma noite não houve estranhos, todos se saudaram.

A minha gata...

...assustou-se ligeiramente com a festa, ela que não vai em grupos. Depois de algumas festas adormeceu sobre si.

domingo, junho 20

Mais perguntas, afinal com resposta.

Por que são anónimas as perguntas sem resposta e só voam com rede? Segunda tentativa séria de responder ao que aparece.

12. Porque é que abreviatura é uma palavra tão grande?
As palavras, como as heras, crescem para além dos pontos finais.

13. Porque é que as lojas 24 horas tem fechaduras nas portas? E já agora, porque é que tem portas?
Nunca se sabe o que chega na última hora.

14. Como é que se deita um boomerang fora?
Atirando-o para a fogueira.

15. Porque é que nos anúncios a pensos higiénicos, utilizam líquido azul?
O sangue menstrual é um produto de limpeza.

16. Depois de comer, os anfíbios precisam de esperar três horas para sair da água?
Trinta minutos é suficiente, o tempo líquido é diferente e o peixe digere-se bem.

17. Os sinais que dizem, “Proibida a entrada de animais, excepto cães-guia”, são para o cão ler ou para a pessoa cega?
Para os outros, que parecem cegos, não desatarem a ladrar. Os cães-guia vão a todo o lado sem pedir licença.

18. A gravidez de uma prostituta é acidente de trabalho?
Não, da mesma maneira que a de uma ginecologista também não o é. São profissões que trabalham em locais onde os outros têm prazer, apenas isso.

19. Qual é a ideia de esterilizar uma agulha a um condenado que vai receber a injecção letal?
Para que o Estado não fique com a consciência suja por mais esta morte "limpa".

20. Como pode o Pato Donald ter sobrinhos se não tem irmãos? !
Ora! É do jet-set de Cascais.

21. Porque é que um polícia deve dizer a um surdo-mudo quando o prende que ele tem o direito de ficar calado?
São os direitos inúteis da democracia: se o homem tem as mãos presas, não vai dizer nada contra si próprio.

22. Porque é que o Batman usa as cuecas por cima das calças?
Julgas que é fácil mijar em voo?

Da casa

O laranja é uma das cores. Deve tal escolha para lugar higiénico ser considerada suspeita?

Parar para pensar

É raro, mas a televisão reflecte-se. Acabou de ser emitido mais um excelente programa, Arrêt Sur Images, onde a equipa liderada por Daniel Schneidermann escalpeliza os processos e os modos como a televisão trata os assuntos, desta vez, as vítimas. O programa não simplifica nunca, mas retira-se como conclusão que as televisões gostam de vítimas e que há uma vitimização compulsiva. Se nem sempre o assunto passa pela televisão, as imagens estão invariavelmente sob análise, com saber e sabor. O programa, muito originalmente, oferece-nos até a possibilidade de o vermos por inteiro on-line, sem os cortes da realização. Cai, aqui e ali, no jeito francês da militância, mas não deixa de ser reduto de inteligência, portanto a pedir discussão. E utilíssimo, pois todos somos abusados pelas imagens. Abusados e abusadores.

Desejo (quase) matinal

Espero que mais logo a festa aconteça, como aconteceu ontem no espantoso Holanda-República Checa: cor, alegria, vontade, movimento, inteligência e golos.

sábado, junho 19

Aritmética de morte

O relatório da comissão de inquérito norte-americana aos atentados de 11 de Setembro tem vários detalhes assombrosos do ponto de vista político, mas não é nessa discussão que quero entrar. A guerra tem milhares de anos e práticas, numerosos teóricos e celebrados praticantes, e a violência mais ainda. Talvez não haja, portanto, surpresa nesta cena de uma macabra peça. Algures numa base da Al-Qaeda, no Afeganistão, «os recrutas eram livres de pensar criativamente em formas de cometer assassínios em massa». Excluamos agora a ideológica escolha das palavras, para nos concentrarmos nesta tenebrosa imagem de um brainstorming de morte, com os “alunos” a disputarem entre si a criatividade de um mal maior feito de mortes inocentes. Ser capaz de reduzir o outro a este nada é a vitória do terror. Ora a cultura árabe (a quem se atribui a invenção do zero, por junto com a Mesopotâmia...) não tem, longe disso, este exclusivo – não esqueçamos Hiroshima. A fractura civilizacional está, pois, na recusa da violência, no reconhecimento do outro como igual, na interrupção desta aritmética de morte. Há que começar algures em nós.

quinta-feira, junho 17

Perguntas, afinal com resposta.

Por que são anónimas as perguntas sem resposta e só voam com rede? Primeira tentativa séria de responder ao que aparece.

1. Porque é que tudo junto se escreve separado, e separado se escreve tudo junto?
Porque nada nos separa da escrita.

2. Porque é que os números marcados por engano nunca estão ocupados?
Porque muitos são os chamados e poucos os que atendem.

3. Se a Barbie é tão popular, porque é que se tem de comprar todos os amigos?
Porque todos temos um preço, caro amigo.

4. Se uma das nadadoras de natação sincronizada se afogar, as outras também se afogam?
Claro, noblesse oblige. Pois se o inferno são os outros!

5. Se tentares falhar e conseguires, foi um fracasso ou um sucesso?
É a vida: um fracesso!

6. Se a “caixa negra” nunca se danifica com a queda do avião, porque é que todo o avião não é feito de “caixa negra”?
Porque precisa de voar. É mais fácil encontrar o erro (depois), que evitá-lo (antes).

7. Se os psíquicos conseguem adivinhar os números do totoloto, porque é que ainda estão todos a trabalhar?
Os jogos de azar não dão sorte a ninguém. A não ser aos donos do casino.

8. Como é que se escreve zero em numeração romana?
Com espada e de quadriga. Os números imperiais são brutos.

9. Porque é que os sumos de limão são feitos com aromas artificiais e os detergentes de loiça com limões verdadeiros?
Queres mesmo saber a verdade, encardido?

10. Porque é que os pilotos Kamikaze usavam capacete?
Para não morrerem antes da hora marcada e fora do lugar.

11.Uma tartaruga sem carapaça é sem abrigo ou está nua?
Nada disso. Trata-se de uma espécie rara, mais veloz do que a própria sombra.

quarta-feira, junho 16

Da casa

Não deixo de me surpreender a cada vez que descubro mais molduras românticas – as que esperam, cegas, a fotografia exacta.

A B e C

O que temos que encontrar nunca está no sítio onde o procuramos. Lágrimas Negras, encontro do pianista cubano, Bebo Valdez, com Dieguito el Cigala, cantaor , não deve ser procurado na prateleira deserta e poeirenta (por que são todos os desertos poeirentos?) do Flamenco, algures nas traseiras da Música do Mundo, como teimei e quase me perdi (seria mau, perder-me por ali?). Com grafismo luxuosamente discreto assinado pelo estúdio Mariscal, o que não é de somenos, está no top dos mais vendidos é extraordinário. Quer isto dizer que nos atira para fora do ordinário, memso estando entre os mais vendidos, assim e com simplicidade. Primeiro dado, um tem oitenta e tal anos o outro é novo, mas qual deles é o quê neste prazer e entrega? Estão ambos por inteiro, ali compondo mundos. E tocam-nos. Não é estranho interpretarem o amor e o sofrimento, a separação e o desejo com alegria? Estão separados por oceanos, por estilos e temas, mas juntam-se nestas diferenças. Como a imagem gráfica, tudo é bom gosto: alinhamento começa com B & C, com pouco mais, entrando depois em palco um (saxofone) e outro instrumento (violino) até que entra, no final, Caetano Veloso e a poesia do português. Nada nos distrai do essencial, o piano refrescante correndo como rio, dançando em torno da voz que voa, rouca, esforçada e hesitante: cantante. «Meu coração não se cansa/De ter esperança/De um dia ser tudo o que quer» E que tem isto a ver com futebol? Toda a vida tem a ver com a bola. Descobri tarde a metáfora, mas foi a tempo. «Meu coração vagabundo/Quer guardar o mundo/Em mim» Abre-se o chão a meus pés.

terça-feira, junho 15

Castelo Negro

Chega-me o olhar do Paulo, de um Castelo Branco só de nome, e percebo que a nossa derrota não tem a ver com futebol. «Daqui avisto pela janela as frontarias dos prédios ao sol do meio da tarde. Aos seis meses de inverno sucederam os seis de inferno e os incêndios já se espalham um pouco por todo o lado anunciando outro inferno dentro do inferno, como no inferno passado.» E o pior é a minha impotência televisiva.

Cansaço

Nem todas as árvores morrem de pé, algumas tombam com estrondo. Viu-se ontem no Porto.

segunda-feira, junho 14

Da casa

Por esta altura não há vazio. Sem pedir licença, o calor ocupou o pequeno mundo à volta. De nada servem os protestos: nem o gemido das dobradiças, os estalidos do soalho ou o ranger dos móveis e muito menos o sopro das ventoinhas. Veio para ficar entre nós e as coisas.

Sargaçal

Há uns meses, a propósito de correcções, recebi um e-mail do José Rui Fernandes: «Catar gralhas é um trabalho que nunca acaba. É como plantar árvores – ainda tenho 119!» Um pouco mais adiante lia, pasmado. «Plantei uma Sequoia Gigante de semente e tem neste momento uns dois ou três cm. Não é fantástico pensar que pode viver uns 3000 anos e crescer uns 120 m? Daqui a dois anos conto metê-la na terra.» Desde então passei a querer saber das árvores, seres que muito admiro e que sinto não estimar nunca suficientemente. E as nossas árvores?, fui perguntando para me comover com as respostas. «Lá andam. As de fruto estão todas a rebentar. Castanheiros vou plantar os últimos trinta para este ano. Ainda vou ficar com 25 em vaso porque o tempo passou e eles estão a despertar para a Primavera. Fica para o ano. Além disso, ainda tenho 26 Liquidambar e cinco Bétulas (ou serão Faias?) – mas tenho ainda de preparar o terreno. E fico por aqui para este ano. No total quase 200. Foi bom apesar de tudo. Tenho no frigorífico uma série de sementes para ver se germinam e se as coloco daqui a dois ou três anos. Espécies extraordinárias, como a mencionada Sequoia, Metasequoia, diversos Acers, Cupressus e outras.» Para alguém que raramente deixou a cidade, ter uma floresta em potência no frigorífico é motivo de contínuo deleite. Todos estes nomes entraram em mim com a estranha potência do sonho. O José Rui e a Susana trouxeram agora o Sargaçal não apenas para o ecrã, para o interior das memórias, mas para a minha geografia pessoal. Eles vivem no Grande Porto, mas investiram em terra mais a Norte com um amor único. Vou acompanhando cada aventura como a novela que é, de facto. O José Rui revelou noutros projectos, como a Mundo Fantasma, ou a Mais BD, uma capacidade muito própria para o detalhe. Para mim, é um deslumbramento saber dos nomes científicos dos fetos (também gosto imenso destes velhos, Zé Rui!), ou que há uma sociedade (quase secreta) de interessados, admirar o escaravelho verde, saber que ainda há quem lavre, o avanço e recuo dos trabalhos, a atenção às práticas ecologicamente correctas, o cheiro do rio e até as marcas das ferramentas. Notem bem o sabor dos nomes simples que surgem nos sítios: tapada, tanque, largo, estradão, lameiro. Sugiro que, na mesma linha de simplicidade, abandones essa terceira pessoa e tragas o eu para a conversa. Ficamos assim a saber a quem pertence o olhar que nos apresenta este mundo de aventuras.

domingo, junho 13

A minha gata...

...não reagiu quando lhe disse que a Alice está há horas a parir uma ninhada de gatinhos cor de mel, com traços variáveis de cinzento. Assuntos felinos e programas de vida animal não lhe interessam.

Vidinha

Não é o primeiro amigo admirado com a minha «recente blogomania». Mas este é um navegante experiente destas águas em rede que me diz serem os blogues, com uma ou outra excepção, «uma perda de tempo assinalável». Não acha piada ao Muro, por razões de opinião política, parece-me. Diverte-se com os Crimes. E este? «É mais melancólico que a tua gata – ou és tu? É engraçado que contrasta bastante com a imagem que tenho de ti, cheio de projectos e dinâmico qb.» São questões pertinentes, os blogues e o que faço dos meus dias. No primeiro caso, eu próprio estou admirado e confesso que não sei quanto tempo aguentarei. Resisti muito até que, sem pensar nas consequências, arrisquei fazer aqui o sempre adiado diário, para o qual não tinha arranjado ainda vontade ou disciplina. É certo que a versão blogue ganha certas características e perde outras. Mantém o registo de detalhes destinados a perderem-se, introduz o tempo mais pausado da reflexão. Todavia, por ser imediato e aberto, alguns dos temas com cabimento em diário de papel devem aqui ser filtrados. Também pede sugestões informativas, na ilusão de participar no tempo real e na realidade deste tempo. Não conto que fique assim, apenas a boiar na melancolia. A intenção é «tudo e mais alguma coisa» na mais libertária lógica associativa. Logo veremos. O meu dinamismo é, tantas vezes, aparente. É certo que me sinto bem na interacção e na concretização, mas invisto valor particular na ideia e na palavra projecto para a aplicar sem mais nem menos. E dou-me muito bem fazendo rigorosamente nada. Aliás, anseio por isso. Talvez me deixe levar em demasia pelas ondas da vida, que teimo em ver como oportunidades. A agenda enche-se logo com compromissos sempre em falta, trabalhos dos quais acabo por retirar pouco prazer ou realização. Tenho momentos em que anseio por um horizonte para perseguir até ao fim, assim a modos como um destino. Isto cansa-me sobremaneira, surgindo-me como uma preguiça de decidir. E noutras alturas percebo a grande inutilidade de tudo. Diz este meu amigo, aliás muito pouco social cuja vida vista de fora me parece acertada e em bom caminho, ao contrário da minha que é muito vacilante e dispersa, que tem «um mood altamente flutuante ao ritmo não sei de quê e que não percebeu se são as depressões que trazem realizações ou se são as realizações que me deprimem.» Depressão é uma palavra clínica, que está demasiado presente nos nosso vocabulários. Os trabalhos de viver não se resolvem no médico e o mood depende a cada instante da música que se ouve.

sábado, junho 12

Mundos na música

Sei pouco do futuro, mas sou capaz de adivinhar por onde andarei de 29 a 31 de Julho. Será em Sines, no magnífico Festival de Músicas do Mundo. Este ano, entre muitas várias razões, há a elegância comovente de Rokia Traoré e o absoluto desconcerto de Tom Zé. Com estes dois, do Mali e do Brasil e de sítio nenhum, floresce a poesia do desejo, o calor da reflexão, o som apesar de todas as geografias, a palavra que perturba, puro encantamento. Vibro por antecipação.

sexta-feira, junho 11

Palcos do tempo

Há dias que tento sem sucesso escrever um texto-encomenda em torno do tempo. A passagem destas horas tem sido experiência sensacionista rodeada de mortes, de miséria moral, de notícias tristes de um país que perdeu a ideia a velha ideia de carácter. Digo isto não tanto pela hipocrisia política, pelo nacionalismo serôdio, mas por experiências próximas, quase íntimas. Estando nisto, explode-me A Bomba com Woyzech e o seu drama fragmentado, também ele feito de miséria e morte, de esforço e grito. Os outros, segundo Georg Büchner, são um inferno portátil que nos remetem a cada momento para o pior de nós. Basta-lhes estar, nem precisam de ser. São eles, cada um dos outros, que rasgarão a golpes o destino daquele que nasce condenado. Apetece-me muito o teatro, feito de palavra e corpo, com uma verdade que não encontro há muito no palco. Aliás, desde que sinto regressar Deus como interrogação aos meus dias, penso muito em teatro. E o que tem isto a ver com o tempo?

quinta-feira, junho 10

Da casa

Será que sou só eu que vejo a veia erótica dos veios do mármore?

A minha gata...

...mal adivinha o calor espalha-se pelo chão como um tapete negro e lustroso. É de lá que nos lança os seus amarelos de ternura fulminante.

quarta-feira, junho 9

Carta aberta ao passaporte

Não foste o primeiro, nem serás o último. São meia dúzia de folhas e carimbos, mais um visa e uma foto. A fotografia a la minute tem aquela qualidade surpreendente de nos apanhar sempre em momento irreconhecível. No caso, ao acordar, tentando a normalidade. O visa era para o país das torres gémeas, os carimbos cheiram a sul e a oriente. Tu, em concreto, fizeste-me companhia sempre em bons momentos. Foste chave de acesso, com essa dignidade bordeaux, a passagens quase exóticas. Aquele que te substitui irá para longe, trará outros relatos. Não me iludo pois nada conservas, a não ser restos de tinta, suor e as impressões dos controladores. Não guardas as histórias. Repousas agora no arquivo triste de um governo civil. Por pecadilho de juventude, quando andavas pelo verde, esqueço que és ferramenta de controlo quase medieval (na palavra e na cor), dizes aos polícias por onde ando, que idade tenho, além da pureza do meu cadastro, das minhas intenções. Dizias da minha identidade, cuidando que ela se conserva em fotos e datas e nomes.

terça-feira, junho 8

A minha gata...

...enche-nos de pêlo. Acha estranho que, sendo da mesma família, tenhamos tão poucos.

TV UP

Nem sempre assisto, mas desconfio que há um outro motivo para ver esse ser estranho dito A:2, isto para além da série Anjos na América. O programa chama-se Pop Up, obedece aos caprichos da Cláudia Marques Santos e do Rui de Brito, além de vir sendo encantando pelos offs da Inês Meneses e pela imagem do Pedro Macedo. A escolha das peças obedece ao critério das ideias-fashion tentando pintar Lisboa e talvez o Porto como cidades cosmopolitas (quando quase tudo se passa no Porto e aqui quase nada), mas tem momentos de televisão únicos na sensaboria nacional. Acabo de ver uma “recensão” ao próximo Jim Jarmush (Coffee & Cigarrettes) com os críticos Miguel Somsen e Pedro Marta Santos a glosarem o tema à mesa do Estádio, em pleno Bairro Alto, a preto e branco, com sentido de humor e ideias. E fazem tanta falta as ideias na televisão que merecem o nosso olhar.

Da casa 02

O pícaro da maçã, se abandonado, solta um perfume de férias grandes.

Nuvens que não passam

Não sei de boletim meteorológico que diga de onde vem e para onde vai este anti-ciclone que me empurra com nuvens densas para sítios de lugar nenhum morada das miragens de torpor e indiferença cujas mínimas abertas deixam entrar as trovoadas que desorientam as bússolas de iluminar descaminhos. Não sei, daqui em diante não sei. Se olho para trás são tantas as horas assim que me assusto com o torvelinho de desesperos esvoaçantes. De dia são os carros que não passam sem apitar e à noite são as vozes do álcool que não passam sem ficar. Este tempo só passa se o Chet Baker cantar. Um trompete canta azul?

Da casa 01

Não gosto que a fruta me apodreça assim, às escondidas. Acho que as tangerinas ficaram com ciúmes das cerejas que chegaram do Fundão.

Descrição 05

Apesar do verde vítreo deve ser preservada da luz e do calor. Quando fresca, aquele verde ganha uma tez mate, que anuncia na pele o que acontecerá na boca, lábios, língua e papilas. A abertura fácil anuncia com um sopro aquilo que a pele antecipou. Sem tampa, ainda ela esverdeada, sobram pequenos degraus em espiral que dão expressivo sinal de incompletude. É por isso que não deve ser usado copo para se beber tal transparência. Verte-se em goles decididos, mas não se engole logo. Pode deixar-se ou não tocar os lábios. Nalguns casos uma gota caindo sobre o queixo fará delícias para a filosofia de vida. O carácter gasocarbónico deve explodir em qualquer caso por sobre a língua. Este produto de Portugal é recolhido a norte, lugar que é também paragem de comboio. Nenhuma água possui esta personalidade de rocha. Muito menos o nome. Há nas Pedras Salgadas uma harmonia na quantidade de gás, no sabor levemente ácido, uma vontade de montanha em busca de oceano, de rua ansiando por esplanada, de dia a pedir o seu fim na beira do rio. É algo que não vem na composição química, algo mais do que a pureza bacteriológica verificada por análises periódicas. É uma ideia natural.

segunda-feira, junho 7

Lombada

O Sol comeu a cor desta lombada. Estou em crer que a escolheu com um propósito. O Sol pintou com um amarelo diferente da capa a estreita lombada que oculta um Cícero discorrendo em «Da Velhice»(Cotovia): «Não estou arrependido de ter vivido já que vivi de modo a não ter nascido em vão.» Gostava de poder dizê-lo em voz alta, antes que o Sol me coma.

Feira do Livro

Passei uma tarde rodeado de amigos. Azul que corre ao fundo, azul lá mais para o alto. Entre rio e céu, há o verde e as páginas, essas plantas carnívoras. Passei a tarde à mesa nessa estranha tarefa de autografar, na companhia de quatro amigos ilustradores, a Maria João Worm, o André Letria, o Alain Corbel e o Miguel Rocha, que fizeram comigo os primeiros quatro títulos da colecção «Olho Vivo», que a Afrontamento edita para crianças de todas as idades. O Miguel Rocha, que veio do seu Alentejo para a função, trouxe-me uma bola feita de cores, tudo o que sobrou da nossa «Viagem no Branco». O Alain fartou-se de tirar fotografias, a Maria João mostrou originais, o André passeou a sua preocupação. Estes eram os amigos que estavam, que outros foram passando só ou chegando, como o Miguel, que desenha na Pública, as mui filosóficas «Histórias de Amor». Trouxe com ele «A árvore das folhas que doem», texto e desenho seu, na Campo das Letras. Gostei deste tráfico. A Manuela Rêgo, por exemplo, deu-me o catálogo da sua exposição Desportos & Letras, que reside agora na Biblioteca Nacional. Gente com livros, só com eles, com sede, à procura de palavras. Gente, tanta gente à espera de outras pessoas, outros à procura de mais livros, e aqueles que procuram gente nos livros e matéria de livros nas pessoas. Não sei, será isto uma Feira? Ia desanimado, volto com um pouco mais de ânimo.

sábado, junho 5

Achado, assim perdido

Deve ter um funcionamento semelhante ao da electricidade. No grande interruptor da língua, alguém ligou a palavrinha. A princípio era sussurro quase longínquo. Ouvíamos dizer, eram estranhos que praticavam a perguntinha. Mas a corrente foi passando e ouvia-se perigosamente em bocas vizinhas. De súbito, estava próxima, por entre os lábios de uma amiga. Em nossa própria casa, na família. O cerco foi-se fechando até que o próprio autor destas linhas, apardalado, se apanhou a pontuar o fim de uma frase com a famigerada interrogação: «Achas?» Deve funcionar como a electricidade, mas em mais irritante. O tom sobe entre o A primordial e o S apocalíptico, lançando o desafio em tom de desprezo à cara do interlocutor. Também o próprio pode replicar em eco, repetindo o pingue-pongue até ao infinito. Ainda me arrepio quando a oiço, mas esperemos que o sofrimento agudo que provoca não dure muito. Um destes dias regressará ao limbo onde se perdem os sentidos, será apenas mais um som indistinto com que enchemos as nossas conversas. Pelo menos é o que eu acho, assim perdido.

quinta-feira, junho 3

Alarme falso

Riscam a cidade cuspindo vermelhos e azuis, os cometas brancos marcados a grossas cruzes encarnadas. Toda a gente se habituou a pensar que levam a vida que resta em direcção aos hospitais, à salvação possível, devedora de exames e concertos de via oral ou incisões profundas, de cirurgia urgente ou administração intravenosa. Cada um se engana se supor que são anjos. É nos Anjos que a conspiração se revela transparente: são sete e não podiam ser menos os hospitais que quietos e inquietos por ali acolhem os cometas brancos cuspindo vermelhos e marcados a encarnado. Sete e não podiam ser menos, entre infância e foro mental, com urgências ou ortopédicos, de S. José a Santa Marta. Não conto o das bonecas. A passagem dos minutos é desconcertada pelo som riscado dos cometas. Ninguém nota. Estão postos no sossego de pensar que são anjos de branco a salvar as réstias de vida possível. Não é bem assim. Quem se importa? Durante o dia criam manchas nocturnas, paragens súbitas, hesitações como fotografias no estrebuchar da cidade. E cada crepúsculo anuncia uma grande noite de fado. No interior dos carros luminosos e bojudos vão fadistas apressados, vão de negro e cantando um dos sete destinos. Passam tomados pela pressa, arredando trânsitos e despertando pássaros noctívagos, atirando de olhos fechados gritos de soro e respirações assistidas. São de vidro como manhãs de sol de inverno as pequenas narrativas que se desprendem como fruta madura. Oiçam as vozes tombadas pelo chão ou ainda volúveis na atmosfera: nem sempre são facas, nem alguidares, nem sempre são marinheiros, nem amores esmagados. São atiradas pelas sirenes e cantam rimas triviais que as batas brancas recolhem para se não perderem, preciosas. Alguém as há-de transformar mais tarde, consoante o ritmo e o tema, em xailes negros ou brincos dourados. Outra que passa. Desafinada, parece-me.

A minha gata...

...hoje está Satie: ninguém se aproxime a não ser pela melancolia.

Letra

O brasileiro tem um sopro. Onisciente não é o mesmo que omnisciente, e falamos aqui de deus. O brasileiro, deus me perdoe, fala perdendo letra. Ainda que escreva, perde letra. Embora sem nunca perder o sentido. E qual é? Pra cima! Bute nessa.

A minha gata...

...mesmo quando boceja revela o carácter de uma predadora.

quarta-feira, junho 2

Chocolate

Sugere uma amiga que desgosto da felicidade por ter medo dos sentimentos. Gosto muito destas discussões, se possível com caracóis e cerveja. A minha amiga, que está grávida e, portanto, de bem com a vida, gosta de usar os estereótipos, mas ela sabe mais do que isso, como todas as mulheres (será um estereótipo?). As mulheres aprenderam há muito a pensar com o corpo, levam por isso algum avanço. Só que a felicidade é miserável, depende afinal de tão pouco (a Primavera, um olhar, uma flor), e dura um fósforo. A felicidade é a discussão que passa ao lado, não nos diz nada sobre a vida, não nos ensina nada, é uma espécie de droga que deram de borla há uns séculos para a vender agora, a torto a direito. Dito isto, tenho amigas lindas de morrer, gosto de beijos do tamanho do mundo, adoro receber flores na Primavera e de beijinhos no dói-dói. Também gosto de má língua e de trufas de chocolate.

terça-feira, junho 1

Uma capa

Não falarei do conteúdo, do miolo. Uso o belo título de Rodrigues Miguéis, «A Amargura dos Contrastes», para falar desta capa em nome de todas as outras que Vasco Rosa resolveu dar às recolhas com que O Independente em celebrando um qualquer aniversário. Na sobrecapa, a lombada e a contra-capa vão de amarelo, interrompido apenas pelo branco do rosto. E de rostos se trata, pois o lugar central é ocupado pela arte de André Carrilho, ele que apanha como ninguém a essência de uma personagem, de um autor, de uma pessoa. Carrilho vem no interior dos corpos. Migués fuma, olha a três quartos, através de grandes óculos, para um qualquer horizonte, cabelos a raiar de branco, como branca é a camisa sobre o fundo. Cada letra está no sítio certo, ao centro a dizer o brandamente o essencial, por sobre a figura solitária. Miguéis foi um pensador solitário, vestiu elegâncias de branco e olhou para além da amargura. É raro encontrar assim tudo, em capa dura, neste equilíbrio de contrastes: letra, desenho e espaço.

Descrição 04

Uma folha de papel, mas poderia ser de aço desde que não brilhasse. Singela. Arrancada ao bloco, assim o denuncia a irregularidade esburacada do topo. Um traço a lápis, à régua, muito próximo da margem diz-me que o papel não começa onde parece, não começa no início do papel, mas onde o artista quer. O artista assina ST, singelamente. O traço é uma figura de traço que desenha, primeiro, um corpo, simples como letra, segurando um frasco de tinta, com a mão esquerda. Na direita tem uma caneta de aparo, que vem riscando. O frasco não tem tampa. Reparo no nervoso do traço: possui a segurança da ideia e o sabor da espontaneidade. A figura está no centro de tudo, perdida nas suas duas dimensões, fundo e corpo para sempre unidos apesar do contorno. O ser que desenha está incompleto. A sua identidade esconde-se por detrás do gesto: o rabisco arabesco que parece assinatura faz as vezes de cabeça (perdida) e rosto (desfeito). Steinberg desenhou, pelo menos desde os longínquos anos 40, inúmeras variações do tema: alguém que se risca, alguém que se desenha, alguém que se assina. Às vezes, o frasco da tinta dizia “INK”.


Estas descrições migraram de outro lugar: http://muro.weblog.com.pt/

Nada para começar

Não sou operário, nem capitalista. Tenho uma chave inglesa e um charuto. Já usei aquela, mas esqueci-me. Fumei o outro, mas não se repetirá. Tenho medos para todas as ocasiões e livros para gastar um destes dias. E inércia, uma enorme inércia que carrego montanha acima, vida abaixo, sempre a direito e em desespero. Não passa nada. Não acontece nada. Vivo uma espécie de evolução sem revolução, uma involução na continuidade. Irrita-me muito não ter sorte, mas também não posso dizer que tenha azar. Vivo apenas banalidades de base e humilhações diárias. Não sou assaltante nem banqueiro. Detesto a ideia de felicidade, e gosto da de sabedoria. Revolto-me, sem que grite ou chore. Não tenho nada. Agora talvez tenha um diário.