quinta-feira, fevereiro 17

Retrato do Porto, minúsculo ardendo

Admito que outras cidades aconteçam assim no nosso coração, mas cada ida ao Porto obriga-me a digestões difíceis, não apenas por causa das tripas, dos afectos ou do granito. Esta cidade mantém um modo de conservar segredos à frente dos olhos que a desmultiplica como quem refaz, nunca do mesmo modo, uma velha receita. Aqui há uns tempos reencontrei em casa vermelha afastada do centro um velho amigo dos de todos dias, dos de antes como dos de mais adiante. Chorei durante o abraço não tão longo como me apetecia, fingindo assim daquelas normalidades que detesto. Diz-me agora outra voz amiga, nesta cidade de cruzamentos entre o que fica e o que flui, que devia vencer preconceitos e ignorâncias (no geral, irmãos gémeos) e espreitar no Soares do Reis a exposição do Artur Loureiro. Fui, sem resistir a passear-me antes (e depois...) pela exposição permanente que inclui humidades e outros fungos(deixo algumas impressões duradouras para comentário posterior). Atenho-me agora no Artur Loureiro, que se gostava de apresentar como pintor fracassado. Ora os fracassos e seus mentores, deste ou de outro modo, interessam-me por razões muito íntimas, mas este fantasma fica, também ele e por agora, afastado desta visita.
Impressionaram-me tanto, mas mesmo muito, e para além de um barco e de uma certa paisagem com rio (não por acaso, claro; tudo minúsculo, claro), os seus auto-retratos (plenos de ironia e luz, mágoa com deleite). Não sendo fácil encontrar no gesto o espelho exacto que revela sombra e luz e, portanto, humanidade, com o que esta sabe misturar de claridade e obscuridade (o Porto é cidade tão humana!), o pintor que seja capaz de se entregar na tela resolve aos meus olhos esse problema da ciência, aquele da dança amorosa entre objecto e sujeito. Artista que seja capaz, como Artur Loureiro, de se deixar esmagar pelo seu próprio olhar objectivando com suprema subjectividae projecta-se muito para lá do sucesso, incarna o enigma de Agamben: «contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o raio de trevas proveniente do seu tempo». Loureiro, sei-o agora, foi tão ou mais contemporâneo que os seus, apesar da paisagem. E isso nota-se mais ainda e com ironia nos retratos que dois amigos lhe dedicaram, Abel Salazar e Columbano Bordalo Pinheiro: são ardentes e difíceis, rasgados e minúsculos, como malagueta ou uma cavilha de Páscoa, isto para começo de conversa.

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