segunda-feira, fevereiro 7

Brutais levezas

Não devia haver semana depois de uma noite como esta, que afinal até foram umas quatro. Camané surgiu da escuridão sentado à mesa para cantar «Do Amor e dos Dias». Apesar de ter à mão um telefone de baquelite, não houve emergência de registo, tudo decorreu como o cenário de gosto retro sussurrava: estávamos em casa contemporânea cheia de passados, na sala-de-estar ou no escritório-de-sair, mas com quarto-de-ir-e-vir ao fundo, e as cordas (guitarra, baixo e viola) rangiam enquanto a voz imensa enchia cada recanto do São Luiz e dos ouvintes pasmados. Quem diz voz, diz poesia, fosse a de Cesário Verde celebrando a lubricidade e os olhos maiores que bibliotecas ou a de David Mourão-Ferreira chorando abandonos e a imensa noite. Nem o cenário nem a ligeira encenação esmagaram a espontaneidade, antes sublinharam o enigma. Que tem Camané que o faz tão perturbante? Vem do fado, que canta a tristeza, a solidão, até o amor e portanto a vida, com uma ironia única (sim, sabemos que estamos condenados, que a miserável felicidade pouco importa, mas o destino obriga-nos à viagem repetida e banal pelo que devemos cantar ou ouvir ou calar e sofrer de novo e assim mergulhando nos afastamos um pouco mais resistindo). Vive o fado, mas dobrando-lhe as palavras, as métricas, os ênfases de um modo que o projecta muito para além das suas poses, dos seus rituais, como fazem os seus joelhos antes de atirar aos céus os versos finais. Dá-lhe mundo, com a sua mundividência. Ouvimos Camané para nos entristecer? Para nos alegrar? Sim e não, para tocar a vida por instantes.

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