quinta-feira, junho 3

Alarme falso

Riscam a cidade cuspindo vermelhos e azuis, os cometas brancos marcados a grossas cruzes encarnadas. Toda a gente se habituou a pensar que levam a vida que resta em direcção aos hospitais, à salvação possível, devedora de exames e concertos de via oral ou incisões profundas, de cirurgia urgente ou administração intravenosa. Cada um se engana se supor que são anjos. É nos Anjos que a conspiração se revela transparente: são sete e não podiam ser menos os hospitais que quietos e inquietos por ali acolhem os cometas brancos cuspindo vermelhos e marcados a encarnado. Sete e não podiam ser menos, entre infância e foro mental, com urgências ou ortopédicos, de S. José a Santa Marta. Não conto o das bonecas. A passagem dos minutos é desconcertada pelo som riscado dos cometas. Ninguém nota. Estão postos no sossego de pensar que são anjos de branco a salvar as réstias de vida possível. Não é bem assim. Quem se importa? Durante o dia criam manchas nocturnas, paragens súbitas, hesitações como fotografias no estrebuchar da cidade. E cada crepúsculo anuncia uma grande noite de fado. No interior dos carros luminosos e bojudos vão fadistas apressados, vão de negro e cantando um dos sete destinos. Passam tomados pela pressa, arredando trânsitos e despertando pássaros noctívagos, atirando de olhos fechados gritos de soro e respirações assistidas. São de vidro como manhãs de sol de inverno as pequenas narrativas que se desprendem como fruta madura. Oiçam as vozes tombadas pelo chão ou ainda volúveis na atmosfera: nem sempre são facas, nem alguidares, nem sempre são marinheiros, nem amores esmagados. São atiradas pelas sirenes e cantam rimas triviais que as batas brancas recolhem para se não perderem, preciosas. Alguém as há-de transformar mais tarde, consoante o ritmo e o tema, em xailes negros ou brincos dourados. Outra que passa. Desafinada, parece-me.

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