As nossas noites, minhas e de um ou de outra, hão-de ser as do tudo é possível. Nos dias em que tremia com a possibilidade de um beijo, a noite era o meu território. Nem as tardes de sábado, nem o escuro das danças, mas a noite que vinha mal os olhares trocados cobriam o Sol era o palco do meu teatro. Eu que não danço dançava, e a minha conversa interpretava, como ainda hoje, o tonto bailado de uma história sem nexo.
Como se falasse de sexo, os projectos mais doidos, a crença numa maneira de escrever ou num logotipo de revista aconteciam em plena noite, jamais turvada pela lúcida liquidez da distância que tínhamos de andar ou do álcool que bebíamos. Pouco importava se era numa cave solar ou no fazer de caminhos sobre a mais alta colina de Lisboa, querer andava misturado com o fazer e por isso as longuiiiiiiiiiíssimas noites eram iluminadas pelo mais inesperado dos sons ou das imagens ou das palavras.
A noite dentro do trabalho por acabar, do escrever à mão, do bater à máquina, do passar ao computador há-de ser sempre a noite, ainda que o Sol ilumine de vermelho cada uma das telhas vermelho tijolo. Só a ausência de luz permite a solidão que origina a criação. E a preguiça, pois a noite é todas as noites inutilidade, ronha e desperdício, senão mesmo crime. Para que serve o sono senão para dar à alma uma oportunidade de preguiça? O descanso é a miséria do futuro, mas o trabalho é a ocupação dos tristes. O sono é uma derrota. De olhos abertos, quando os outros dormem é a máxima para os que, mesmo quando os candeeiros se apagam, lhe bastam os mínimos para se conduzirem pelas ruelas obscuras.
As confissões mais lamechas e tontas, as lágrimas mais sentidas são vertidas no coração da noite. Nessa altura, e só nessa, músculos como o coração se sabem soltar e exercitar. Somos mais fortes durante a noite, mas também somos mais nós. É por isso que choramos, quando a amizade nos fere ou quando a surpresa nos dá nós.
A vida sabe ser um enjoo e daí que os vómitos mais fundos, mas também os mais fecundos, sobre a humana condição, surjam nas navegações noctívagas. A sensação amarga de nos cuspirmos é uma metáfora do desejo. É tanta a vontade de abandonarmos o navio-corpo ou a viagem-vida que nos surpreendemos com a energia do rasgo, com a força que parece vir do nosso centro mais profundo, mas que é só estômago. A digestão dos dias também parece arrotar nos sonhos, mal a luz se ausenta para parte certa.
Por tudo isto, e mais alguma coisa, a noite é, como só no feminino, a suprema surpresa do amor, o sopro perfumado da inspiração, a mais fina concentração, a mais impossível das possibilidades. Por tudo isto vos digo que a noite está em vias de extinção, agora que ela chega de mansinho.
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